Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 24 de março de 2010
1819) Tia Nunum (7.1.2009)
Chamava-se Anunciada, e era a mais jovem e a mais divertida das minhas tias maternas. Mesmo tendo convivido com ela até sua velhice, a imagem que guardo comigo é a de uma moça de vinte e tantos anos com cabelo louro, rosto claro e um permanente sorriso aberto. Consolo-me pensando que está viva e imutável, e que a senhora de 83 anos que faleceu dias atrás era outra pessoa.
Pela pouca diferença de idade, ela era para mim e para minha irmã Clotilde uma espécie de prima mais velha, com autoridade para nos dar ordens e disposição para ser uma infatigável companheira de brinquedos. Jogávamos ludo, damas, relancim. Tide, num artigo recente, lembra episódios da nossa infância, inclusive o que deu origem ao termo “O Raio da Silibrina”, que eu inadvertidamente tornei famoso. Já falei sobre isto aqui – procurem “Silibrina” no meu blog (http://mundofantasmo.blogspot.com). Na minha lembrança, certa noite meus pais foram jantar fora, e Tia Nunum resolveu pregar-lhes uma peça. Chamou nós dois; reunimos umas roupas velhas, sapatos, um chapéu. Recheamos aquilo com jornais amassados para fazer volume. A cabeça era um travesseirinho com uma máscara de carnaval presa com elástico, e o chapéu em cima, firmando. Um par de luvas formava as mãos, que seguravam um copo e um cigarro. O “judas” foi sentado no sofá da sala, e ela pregou no peito dele um pedaço de cartolina onde escreveu: “O Raio da Silibrina”. Escondemo-nos atrás da poltrona. Quando meus pais chegaram e acenderam a luz, houve o previsível espanto, e as nossas gargalhadas.
Nossa memória é infiel, elusiva, escorregadia, mutante, parece-se mais com o delírio verbal de James Joyce no fim da carreira do que com as filigranas apolíneas de Marcel Proust, o homem que nada esquecia. Lembro Tia Nunum desenhando num caderno rostos femininos de longas pestanas, copiando letras de músicas, inclusive uma (que ainda creio ter em alguma pasta) de uma música que ela cantava muito, e que enumerava e comentava todos os bichos do Jogo do Bicho, de 1 a 25. Foi também ela que nos ensinou a jogar “Disparate”, em que pessoas fazem listas aleatórias de nomes, ações e lugares, e depois vão encadeando essas listas, formando frases absurdas como “Napoleão Bonaparte – e Tia Neuza – pescando caranguejo – no planeta Júpiter”.
Era a mais bonita de todas as irmãs, e nunca se casou, talvez pelo excesso de responsabilidade. Um namorado que teve a achava parecida com Lauren Bacall, e eu, que era apenas um garoto, me senti orgulhoso porque também já tinha pensado a mesma coisa. Já mais idosa, com quarenta, cinquenta anos, ainda passava temporadas inteiras na casa dos meus pais. Jogávamos crapô, víamos filmes na TV, e no auge da minha fase john-lennon cabia a ela aparar de vez em quando minha cabeleira hirsuta, que eu jamais confiaria aos barbeiros do Calçadão. Tia Nunum foi alegre, triste, jovem e velha, bela e contida, mas sempre cheia de amor para distribuir. Morreu no Natal, como Carlitos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário