Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 16 de março de 2010
1796) FC ou Fantasia (11.12.2008)
(A Sombra do Torturador, de Gene Wolfe)
A diferença entre ficção científica e fantasia, dois gêneros tão próximos, não é tão evidente quanto imaginamos à primeira vista. Nosso primeiro impulso é defini-los a partir do “mobiliário”, por assim dizer. A Ficção Científica é mobiliada com espaçonaves, robôs, alienígenas, máquinas futuristas. A Fantasia é mobiliada com dragões, encantamentos, feiticeiros, castelos, elfos, unicórnios e assim por diante. Dito assim, parece muito simples, mas um dos principais impulsos que movem a imaginação dos escritores é justamente “desobedecer” a esses cardápios, misturar uma coisa com a outra. Um dragão pode ser uma criatura extraterrestre, como em algumas obras de Anne MacCaffrey; uma torre “medieval” pode se revelar, como num livro de Gene Wolfe, um foguete espacial, estacionado verticalmente há tantos séculos que ninguém se lembra mais de sua função antiga.
Podemos também esquecer o mobiliário, os elementos visíveis, e pensarmos na mecânica interna de cada gênero. Existe uma ficção baseada na lógica, no rigor, nas relações de causa e efeito, no encadeamento racional dos fatos, não importa o quanto eles sejam fantásticos; e existe ficção movida por associações de idéias, justaposição de imagens, criação de situações que são logicamente improváveis ou são construídas sem obedecer a uma lógica interna, mesmo que sua aparência exterior recorra à ciência e à técnica.
No primeiro destes casos, temos narrativas que de imediato identificamos como Fantasia, mas é uma fantasia rigorosa, lógica, tratada como se fosse Ciência. Não há arbitrariedade, mas regras que, mesmo fantásticas, são seguidas à risca pelo autor e pelos personagens. Isto ocorre muitas vezes com histórias que lançam mão da Magia, mas uma Magia que tem regras, onde as coisas funcionam sempre da mesma maneira, e onde tudo está vinculado a causas e efeitos. Não importa se o ambiente consiste em castelos, se as armas são espadas, se os inimigos são feiticeiros ou dragões: esta é uma literatura inspirada pela Ciência e pelo rigor de idéias que a Ciência impõe. Isto acontece com certas obras de Ursula LeGuin, como a “Trilogia de Terramar”.
Por outro lado, há histórias de FC que usam espaçonaves, viagens interplanetárias, raios atômicos, etc., mas que se baseiam em fatos extremamente improváveis do ponto de vista científico (viagens no tempo, p. ex., ou então viagens instantâneas através do espaço), e cuja lógica narrativa nada tem de científica. Entram aqui os filmes do tipo Guerra nas Estrelas, que são crivados de inverossimilhanças científicas, e mesmo obras-primas literárias como As Crônicas Marcianas de Ray Bradbury, onde vemos um planeta Marte coberto de florestas, com atmosfera respirável e canais cheios de água onde flutuam barcos. O mobiliário pode ser importante para definir um gênero, mas sua mecânica profunda e a visão do mundo que ela implica podem fazer com que uma obra vá na direção da Ciência ou na direção da Fantasia.
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