sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

1712) O vacilo (6.9.2008)



Certas histórias dão o que pensar, como a que aconteceu com esse rapaz; chamemo-lo Valdir. Conheci-o logo quando cheguei no Rio, porque freqüentava o Barbas, em Botafogo, um bar com shows ao vivo onde cantei algumas vezes. Valdir tinha vinte e poucos anos, era um cara sempre alegre, boa-praça, topava tudo. Se o bar fechava às três da manhã e alguém sugeria ir tomar a saideira em Vila Isabel, ele dizia no ato: “Cabe três no meu carro”.

A tragédia não foi em Vila Isabel nem em Botafogo, mas pros lados da Tijuca, a certa altura da Haddock Lobo. Eram meras onze horas da noite, mas Valdir estava no bar desde o fim da tarde, num daqueles almoços que começam quase na hora do jantar e terminam quase na hora do café da manhã. Ele me confessou depois: “O engraçado é que eu só saí porque achei que estava muito bêbado. Fiquei com medo de beber mais e fazer uma besteira. Aí, na primeira esquina...”

Ao que parece o carro fez uma curva, houve uma turbulência no asfalto e “faltou chão”, como ele descreveu depois. Espatifou-se num ponto de ônibus; se houvesse alguém no banco do carona não teria escapado. Valdir teve uma pancada forte que lhe abriu a testa, e conseguiu sair do carro, no meio da gritaria geral, tonto pela pancada, e com os olhos cheios de sangue. Alguém o levou para a calçada, policiais o cercaram, o que ajudou a evitar um linchamento. Porque embaixo do carro, já mortos, estavam um garçom que tinha acabado de largar o trabalho, e uma mãe com a filha adolescente.

No dia seguinte o pai de Valdir e os advogados o tiraram da delegacia onde dormiu; com a cabeça envolta em bandagens ele foi para casa e aí começou a via-crucis jurídica. Inquérito, julgamento, condenação, réu primário, recurso, espera, novo julgamento, nova condenação, novo recurso... Não sei a história completa, porque isso começou a acontecer em 1988, e eu passo às vezes quatro ou cinco anos sem encontrar Valdir.

Ele amadureceu. Casou, teve três filhas. Tem um cargo na empresa do pai, que trabalha com exportações. Certa vez que jantamos juntos ele me contou que um dia cruzou no Forum com o filho e irmão das vítimas, e este cuspiu na sua cara. Perguntei o que fizera, e ele respondeu: “Limpei o cuspe na manga e dei razão a ele”. Mais do que as condenações jurídicas, contra as quais sempre se pode interpor um habeas-corpus, o que acabou com Valdir foi a condenação da imprensa, das famílias das vítimas, e de sua própria família, ou seja, os pais e os irmãos. A família é honesta, trabalhadora, e este episódio é “a única mancha”, segundo ele.

A mulher e as filhas são loucas por ele e conseguem desculpá-lo. Valdir nunca mais bebeu depois daquilo. Semana passada, vi no jornal que saiu sua condenação final, agora sem apelo. Valdir vai cumprir agora, com mais de quarenta anos, oito anos de cadeia; como não tem curso universitário, vai para o porão comum. E eu lembrei aquele velho mote das cantorias – “os pecados de domingo / quem paga é segunda-feira”.

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