Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
1703) Machado: “Conto Alexandrino” (27.8.2008)
(Machado, por Fraga)
A crítica vê no conto “A Causa Secreta” o melhor exemplo da crueldade literária de Machado de Assis, com seu personagem Fortunato, o sádico torturador de ratos. Penso eu que Fortunato se ombreia com São Francisco de Assis, se comparado a Pítias e Stroibus, os protagonistas do “Conto Alexandrino” (Histórias sem Data, 1884). Se o leitor duvida, siga-me e verá. Os dois são filósofos cipriotas que se destinam a Alexandria para usufruir da generosidade do rei Ptolomeu para com as ciências. Na viagem, Stroibus explica ao amigo que os sentimentos humanos têm sua contrapartida nos animais, e que experimentar-lhes o sangue pode mudar o caráter de alguém.
Diz Stroibus: “Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia... (...) O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da enfatuação nos pavões...” Pítias duvida. Em Alexandria, os dois dissecam ratos, cujo sangue bebem, para descobrir se alguma mudança se processa neles próprios. Sacrificam dezenas de animais na mesa de operação, discutindo pormenores ínfimos: “Pítias observara que a retina do rato agonizante mudava de cor até chegar ao azul claro, ao passo que a observação de Stroibus dava a cor de canela como o tom final da morte. O vigésimo rato esteve a ponto de pô-los de acordo, mas Stroibus advertiu, com muita sagacidade, que a sua posição era agora diferente, retificou-a e escalpelaram mais vinte e cinco”.
Ao beber o sangue dos ratos, tornam-se, eles próprios, ratoneiros de primeira marca, roubando de tudo: “iam aos mantos, aos bronzes, às ânforas de vinho, às mercadorias do porto, às boas dracmas”. A Biblioteca de Alexandria não fica imune aos dois larápios, que furtam “um exemplar de Homero, três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos, uma soberba coleção de cartas originais de Alexandre, cópias de leis atenienses, o 2o. e o 3o. livro da República de Platão, etc.” O conto se encerra com os dois filósofos sendo apanhados, e por sua vez postos à mesa de dissecação, onde novos cientistas os descosem à lâmina crua, para investigar-lhes o caráter: “os infelizes berravam, choravam, suplicavam, mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias.”
É um “conto cruel” comparável aos de Villiers de l’Isle Adam, e uma fábula conceitual semelhante às “Ciberíadas” de Stanislaw Lem. Machado também retoma, de passagem, outro tema recorrente em seus contos, o do indivíduo que copia ou furta idéias aos amigos (v. “Os memes de Machado de Assis”, 27.10.2005). Seus filósofos são auto-suficientes e narcisistas, e só quando sofrem o castigo final percebemos que esses defeitos não estão no seu sangue, mas no sangue da Ciência mesma.
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