sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

1673) A palavra Eu (23.7.2008)




As palavras e as frases que usamos determinam nosso modo de pensar. Não é uma relação mecânica de causa-e-efeito, mas ninguém pode negar que acontece. 

Tanto é verdade que as livrarias estão cheias de livros de auto-ajuda ensinando a gente a dizer “estou com um desafio criativo” em vez de “problema sério”, porque o modo como a gente verbaliza uma situação mobiliza de maneira diferente nossa energia psíquica. 

Toda sintaxe é uma forma de poder.

William S. Burroughs, autor de Almoço Nu e Junkie (ambos traduzidos em 2005 pela Ediouro), foi um escritor obcecado com os processos de dominação mental e de exercício do poder que existem por trás de nosso discurso verbal. 

Burroughs é conhecido por livros onde há um tratamento franco e direto do homossexualismo e do uso de drogas, o que já lhe valeu processos, livros proibidos pela censura, etc. 

Também é um dos principais expoentes da Geração Beat (juntamente com Jack Kerouac e Allen Ginsberg) e é considerado por muitos (por mim, principalmente) como um dos grandes escritores de ficção científica situados fora do “ambiente” da FC.

Diz Burroughs, em seu livro The Job

“O verbo TO BE poderia muito bem ser eliminado de todas as línguas. A identidade que afirma “é” sempre traz consigo a implicação disto e de nada mais, traz consigo o sinal de uma condição permanente. Do mesmo modo, o artigo “THE” contém a implicação de algo único: o Deus, o Universo, o caminho, o certo, o errado. Esse artigo deveria ser eliminado e substituído sempre pelo artigo “A”: um universo, um caminho, etc. (...) O conceito de “OR” também deveria ser eliminado e substituído pelo conceito de “AND”.

Isto me lembra umas teorias de viés anarquista nos anos 1970, em que éramos aconselhados a não dizer “o Governo” e sim “a Administração”, porque “governo” passa uma idéia de controle, de comando, e “administração” revela o que os governantes de fato são: pessoas encarregadas de administrar bens alheios (no caso, do Povo). 

Era o mesmo pessoal que, em Salvador, nessa época, completava com “ss” sutis as pichações de muro que diziam “Abaixo a Ditadura!”, fazendo: “Abaixo as Ditaduras!”, para nos lembrar que nosso problema não era apenas a ditadura de direita que vigorava no Brasil, mas todas as ditaduras do mundo.

Burroughs também dizia: 

“Seja lá o que você for, você não é a palavra EU, assim como não é aquele conjunto de informações que estão impressas no seu passaporte”. 

Esta é uma afirmação muito próxima do que dizia Fernando Pessoa sobre a multiplicidade e divisibilidade do Eu, que é heterogêneo, contraditório. 

Burroughs e Pessoa são dois escritores que foram muito fundo na investigação deste mais elusivo dos conceitos, o da identidade pessoal, identidade psicológica. A vida e obra dos dois são sintomas da fragmentação e do estranhamento que são características essenciais da arte do século 20. É um momento da História em que o Eu se estilhaçou.




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