Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
1660) “A Noite” (8.7.2008)
No início deste filme de Antonioni, um casal visita um amigo que está gravemente doente num hospital. Alguém faz um comentário: “Um dia os hospitais vão virar boates. As pessoas querem se divertir até o fim”. É uma das muitas frases emblemáticas deste filme sobre um escritor desorientado que quer extrair da vida todos os bons momentos, quer (como se diz nesses círculos) viver intensamente cada minuto, e quando mais procura vivê-los intensamente mais se afunda no tédio e em conflitos sem sentido.
Quando eu via Antonioni na adolescência, dizia (repetindo os críticos de cinema) que filmes como A Noite mostravam a crise espiritual da alta burguesia italiana. Para mim, Giovanni (Marcello Mastroianni), com seu carro aerodinâmico, seus ternos impecáveis e seu apartamento cheio de móveis europeus, era o protótipo do alto burguês. Hoje sei que seu personagem nesse filme não passa de um escritor desempregado, como este em que eu próprio me tornei, trabalhando feito um mouro para publicar livros que só os amigos lêem, e freqüentando com condescendência festas de pessoas ricas que o convidam mas o ignoram. Burguês é o industrial dono da festa em que decorre toda a segunda metade do filme, e que faz a Giovanni a chamada proposta irrecusável: tornar-se porta-voz de sua indústria juntos aos operários e à sociedade em geral. Giovanni, já de olho na filha do anfitrião, balança.
O crítico Jean Mitry disse que este filme, como A Aventura, é a história de uma separação frustrada, a história de casais que não dão mais certo, mas já estão a tal ponto enganchados um ao outro que não têm remédio senão ir dormir e esperar que no dia seguinte aconteça alguma coisa. Lidia (Jeanne Moreau) se distancia do marido; passeia pelos subúrbios e deixa-se atrair, fascinada, por um grupo de jovens truculentos que brigam de socos. É uma das cenas típicas de Antonioni, em que pessoas sofisticadas, civilizadas, cultas, deixam-se fascinar hipnoticamente por tudo que exprime selvageria, vitalidade física. Essa seqüência rima com a da boate onde o casal vai ver um grupo de dançarinos negros e sensuais.
A parte final do filme descreve uma longa festa, na qual o casal deriva, de maneira errática e hesitante, para outros interesses. Giovanni paquera longamente com Valentina, a filha do dono da casa; Lidia deixa-se levar para um passeio por um pretendente, mas na hora H bate em retirada. Chove. As pessoas deixam-se molhar no jardim, pulam bêbadas na piscina, deleitam-se com essas transgressões inofensivas. Quando o dia amanhece, Antonioni (com uma fotografia estupenda de Gianni di Venanzo) mostra a claridade enevoada do dia erguendo-se sobre os despojos da farra. Não há nada mais terrível do que o sujeito virar a noite embriagando-se e embrutecendo-se, só para descobrir que a certa altura o “condenado” do sol vai nascer de novo. O casal rola abraçado pela grama. Lidia murmura: “Eu não te amo, eu não te amo”. E a vida continua.
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