domingo, 7 de fevereiro de 2010

1623) Machadiana 01 (25.5.2008)



(foto: Ben Visbeek)

“Não, não lembro em que ano foi. Os anos são todos parecidos, e mudam com muita rapidez. Mal nos acostumamos aos seus algarismos, somos advertidos de que o último deles acaba de ser trocado. Acho o conceito de ano um refinamento desnecessário, deveríamos fixar-nos nas décadas, que estas, sim, consigo distingui-las umas das outras, principalmente antes do quinto uísque. Onde estávamos mesmo? Ah, sim, meu último encontro com o Comendador Fortunato. Foi na casa de campo em que ele enfrentou a aposentadoria, na Serra de Petrópolis, e se não me falha a memória isso aconteceu em agosto de 1997.

“Conheceu o Comendador? Pois deveria. Uma das mentes mais brilhantes de sua geração. Foi meu professor na Faculdade, embora só tivéssemos nos tornado amigos tempos depois, durante o escândalo policial e jurídico que foi a investigação do assassinato do Dr. Junqueira, sócio dele e meu cliente. Fui a principal testemunha na autenticação do testamento de Junqueira, mediante o qual Fortunato entrou em posse de tudo: latifúndios, indústrias, debêntures, controles acionários. Herdou também (não por testamento, claro) a viúva, Heloísa, a dos louros cabelos e olhos azuis.

“Junqueira era tão rico que todo mundo herdou algo com sua providencial desencarnação. Até o seu caseiro, que herdou uma condenação por provas circunstanciais e meses depois um estoque em pleno peito, nos recessos de uma cela superpovoada. E a vida foi em frente, Fortunato cada vez mais poderoso, Heloísa cada vez mais bela, e ambos cada vez mais agradecidos ao locutor que vos fala hoje, a sós, nesta biblioteca de estantes de mogno e lareira acesa, empunhando um tilintante uísque que o distrai da chuva lá fora.

“Chovia quando visitei Fortunato pela última vez. Já faz tantos anos. Recebeu-me com cortesia, mostrou-me o novo haras, a nova piscina, a estufa, as fotos do orfanato recém-inaugurado que mandara construir. Fê-lo com melancolia; após o almoço tomou duas pílulas de um vidrinho que trazia no bolso, e comentou com ironia os avanços da Ciência, que lhe salvava a vida três vezes por dia: após o café, após o almoço, e após o jantar. À noite, mostrou-me livros recém-importados de um antiquário em Milão, e eu lhe mostrei a versão autenticada do novo testamento, que incluía as incorporações mais recentes. “Se eu tivesse dez filhos, ficariam todos ricos com a minha morte,” suspirou ele, “mas Heloísa merece, ela tem sido meu esteio, a razão da minha vida”. Sem uma palavra, ela tomou-lhe nas mãos manicuradas a mão cheia de manchas marrons e veias azuis.

“Não pernoitei. A chuva amainou, aleguei um compromisso urgente e desci a Serra às dez da noite. Trazia no bolso o vidrinho que Fortunato deixara por descuido na mesinha da biblioteca. Em que ano foi? Não lembro. Perguntem a minha esposa, Heloísa, quando ela voltar de uma das suas intermináveis viagens à Europa. De onde, aliás, me traz este uísque com sabor de fogo, de sangue e de lótus.”

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