domingo, 31 de janeiro de 2010

1593) O Cérbero (20.4.2008)




Conta a mitologia grega que à porta do Inferno havia um gigantesco cão de guarda, o famoso Cérbero, cão de três cabeças prontas a dilacerar qualquer incauto. “Mas pra quê?” pensava eu. “Quem diabo vai querer entrar no Inferno?” Na verdade, Cérbero estava ali para evitar que os condenados ao fogo eterno fugissem. Era um cão-de-guarda ao contrário dos que temos aqui – não guardava a entrada, guardava a saída. Mesmo assim, também cumpria a função oposta, porque somente as almas dos condenados poderiam entrar no reino de Hades. Pessoas vivas não – daí o grave incidente diplomático ocorrido quando Orfeu apareceu por lá querendo trazer de volta sua amada Eurídice. E quando Hércules chegou para levar o próprio Cérbero consigo, cumprindo o último dos seus Doze Trabalhos.

Acho que a lenda grega morre aí, mas pretendo enriquecê-la noutra direção. Por que motivo o cão se chama Cérbero? Respondo: porque ele representa o nosso Cérebro, a nossa mente pensante, a nossa consciência. Exatamente por isto ele é figurado com três cabeças (em diferentes versões da lenda, números muito maiores, que chegam até a cem). É o excesso de proteção, de controle, de censura. A função ditatorial do nosso Super-Ego ou que nome lhe queiram dar – a função controladora que nos impede de fazer bobagens mais sérias e de praticar crimes, mas ao mesmo tempo nos proíbe um comportamento mais relaxado, mais intuitivo, mais espontâneo. Toda vez que você vir aquele sujeito todo certinho, todo tenso, todo bem comportado e impecavelmente limpo, todo politicamente correto, aquele cara que na hora de pagar a conta vai até a última casa decimal e paga trinta e dois reais e sessenta e sete centavos – não duvide, amigo: é um prisioneiro de Cérbero, um prisioneiro de sua própria mente controladora.

E por qual estatuto mitológico ele é colocado justamente como guardião da saída do Inferno? A explicação mais lógica que me ocorre é que o Inferno protegido por esse cérebro não é um Inferno externo a nós, e sim interno a nós, um inferno aqui dentro. Como dizia o poeta Gilberto Gil: “Teu inferno é aqui”. O Inferno é o Inconsciente, é o lugar para onde arremessamos tudo que não presta, tudo que nos inquieta e perturba, tudo que é uma ameaça à ordem, à limpeza e à disciplina. O cérebro está ali justamente para evitar que esses pensamentos mal comportados se evadam do porão e venham perturbar o chá-das-cinco que nossa “persona” pública toma na sala de visitas, recebendo as autoridades.

Todas as vezes que tentamos acessar nosso Inconsciente (rastreando um ato falho, dissecando uma neurose, confrontando um trauma daquele bem brabos, ou meramente analisando um sonho), o Cérebro de não-sei-quantas-cabeças aparece rosnando seu recado pitbull: “Pra trás!” rosna ele. “Aqui, não! Aqui só tem o que não presta!” E recuamos, temerosos. Talvez menos com medo das 100 cabeças do Cão do que com medo do nosso verdadeiro Rosto, que estamos a ponto de enxergar.




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