quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

1580) Não aqui, mas agora (5.4.2008)



A Anistia Internacional promoveu há poucos anos uma campanha pelos direitos humanos que incluía uma intervenção vanguardista no espaço urbano. O conceito da campanha era: “Isto existe. Não aqui, mas agora”, e exibia atrocidades que estavam sendo cometidas naquele mesmo instante em outros lugares do mundo. Como se sabe, a Suíça é uma espécie de utopia do bom comportamento, um lugar onde tudo é limpo, tudo funciona, tudo é organizado, tudo é politicamente correto. Um lugar tão irritantemente bonzinho que mereceu de Harry Lime, o personagem de Orson Welles em O Terceiro Homem, a crítica arrasadora: “A Itália da família Bórgia só tinha tiranos e criminosos, mas nos deu as grandes obras de arte da Renascença, nos deu Leonardo da Vinci e Michelangelo. A Suíça é a democracia perfeita, e produziu o quê? Chocolate e relógios-cuco”. (O mais engraçado é que todo mundo atribui essa frase ao ator Orson Welles, que a pronuncia, enquanto ela deve ser de Graham Greene, autor do romance original e do roteiro do filme.)

A campanha consiste em painéis mostrando fotos de pessoas, em tamanho natural, superpostas a imagens que reproduzem com exatidão a imagem ao fundo (uma rua, um prédio, um parque) o que produz um efeito de “trompe l’oeil”. Imaginamos que o painel é transparente, e que estamos vendo pessoas que estão de fato ali. Assim, vemos prisioneiros encapuzados sofrendo tortura, adolescentes mal vestidos empunhando metralhadoras, um pai carregando nos braços o filho baleado, crianças esqueléticas catando restos de comida no chão... Como o fundo da imagem reproduz o fundo verdadeiro do local onde o painel está exposto, a impressão que nos dá é que houve uma ruptura do espaço-tempo e ali, naquela plácida calçada suíça, emergiu de repente uma criatura de Serra Leoa ou Abu-Ghraib.

É um exemplo de como se pode executar uma intervenção vanguardista num espaço urbano – desconstruindo o espaço, usando técnicas de “trompe l’oeil” e de camuflagem visual – e ao mesmo tempo produzir um choque ideológico, um choque político no observador. Critica-se muito a arte de vanguarda por ser esvaziada de conteúdo; a campanha da Anistia nos mostra o contrário. Ela mostra coisas que não existem aqui – no Aqui em que nos encontramos nós, transeuntes suíços – mas existe agora, neste instante, no mundo e no tempo em que vivemos. Por um desses cacoetes mentais que cultivamos, achamos que só é real o que acontece nas nossas proximidades, e que problemas existentes no Sudão ou no Haiti não nos dizem respeito. A campanha da Anistia traz para nosso Aqui (ou, pelo menos, para o Aqui dos suíços) o fervilhar de problemas de um Agora que nós e eles fazemos o possível para esquecer. Quem quiser, confira neste link esses cruzamentos fictícios mas reais entre o Tempo de todos e o Espaço de alguns: http://www.amnesty.ch/fr/actualite/news/2006/nouvelle-campagne-d-affichage-d-amnesty

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