Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 23 de janeiro de 2010
1561) O cinema de Fellini (14.3.2008)
Fellini define seu próprio cinema com lucidez quando expõe o seu método, um método intuitivo e arriscado, que já resultou num número igual de obras-primas e de filmes desconchavados: “O cinema é como o circo: uma mistura exata de técnica, precisão e improviso. Quando aquele espetáculo minuciosamente ensaiado ocorre diante do público, ainda estamos correndo riscos, ou seja, aquilo faz parte da vida. Gosto dessa maneira de criar e viver ao mesmo tempo, sem as limitações que são impostas a um escritor ou a um pintor: mergulhando de cabeça na ação”.
Observe-se que nessa definição do seu cinema Fellini não está se referindo apenas ao momento em que o filme é projetado para a platéia. O cinema, para ele, é o momento da filmagem, aquele momento mágico em que tudo está previsto e ainda assim tudo pode acontecer. Para Fellini, um homem emotivo, extrovertido, gregário, rodar uma cena devia ser um equilíbrio permanente entre as imagens rabiscadas num “storyboard” e o acúmulo de imprevistos e contratempos que se abate sobre uma equipe, mesmo nas condições controladas de um grande estúdio.
Conta-se que 8 ½ surgiu de uma crise de Fellini no primeiro dia de filmagem de um roteiro qualquer, quando ele meteu os pés, furioso, e disse: “Chega! Eu já fiz esse filme! Vou fazer outra coisa completamente diferente!” E então entrou no estúdio e começou a improvisar. O resultado foi o seu filme mais pessoal e mais surpreendente. Neste aspecto, Fellini é o contrário de diretores como Hitchcock e Buñuel, que colocavam toda a sua emoção criativa no roteiro, e durante a filmagem dos planos ficavam bocejando, cochilando, olhando o relógio. Para Fellini, filmar era um raro prazer, e é esse prazer que ele consegue transportar para o resultado que passa na tela.
Um bom exemplo do cinema de Fellini é a última seqüência de Roma: um grupo de motoqueiros, à noite, cruzando a toda velocidade as ruas desertas da capital. Documentário? Ficção? Não sei. Fellini pode estar registrando “in loco” um hábito dos motoqueiros romanos. Pode também conhecer esse hábito e o estar encenando com seus próprios atores e motos alugadas. E pode simplesmente ter tido (por conta própria) a idéia de que seria bonito ver as ruas desertas da Cidade Eterna sendo percorridas por esses cavaleiros futuristas, com rostos ocultos atrás de óculos e capacetes. Sob o rugido incessante e imutável dos motores, as luzes das motos em movimento fazem girar sobre a fachada dos edifícios das praças as sombras gigantescas das estátuas. Lembra o texto de Cortázar (nas Histórias de Cronópios e Famas) em que ele diz existir um ponto, numa praça em Roma, onde à lua cheia vêem-se mover-se as estátuas dos Dióscuros, que tentam dominar seus cavalos rebeldes. Esse ponto é a câmara de Fellini: sob a luz dos faróis de seus motociclistas fantasmas, as sombras do Passado põem-se em movimento sob as luzes do Presente. “E pur si muove”.
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