quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

1484) “Utz” (15.12.2007)


Este esguio romance de Bruce Chatwin tem o encanto indefinível das narrativas que parecem no umbral de um gênero, mas não dão o passo decisivo que as deixaria aprisionadas dentro da armadilha de uma convenção literária. Utz é uma biografia romanceada? Ou a história da vida de um indivíduo imaginário? É um livro sobre a Guerra Fria? Sobre a psicologia do colecionador? É a improvável história de amor entre um patrão e uma criada de meia idade?

Kaspar Utz foi um judeu tcheco, com parentes vagamente nobres, que ainda jovem começou a colecionar porcelanas de Meissen, um tipo de porcelana de extrema pureza que produz peças belíssimas. Não era rico, mas formou sua coleção aproveitando a bancarrota alheia: “Guerras, pogroms e revoluções oferecem excelentes oportunidades para o colecionador”. (Assis Chateaubriand e o Masp que o digam.) Vivendo sob o regime comunista em Praga, Utz consegue freqüentes salvo-condutos para ir à França, pretextando tratamento médico. Poderia fugir, não voltar nunca mais. Por que não o faz? Para não perder sua coleção.

A história começa com o funeral de Utz e a narração de como os dois se conheceram. (O livro é narrado na primeira pessoa; Chatwin é um desses jornalistas-autores que nunca nos dão certeza do quanto é fato e do quanto é ficção em seus relatos.) Ele é apresentado a Utz, conhece sua primorosa coleção, percebe a relação esquisita de Utz com sua fidelíssima e mal-humorada governanta. Utz o recebe meio a contragosto. Os dois discutem a obra de Kafka, discutem política, discutem alquimia, discutem a lenda do Golem (o homem artificial criado do barro, como as peças de porcelana), ironizam os europeus ocidentais que vão à Tchecoslováquia para analisar os dissidentes políticos como se estes fossem espécies em extinção.

Chatwin tem um estilo enxuto, compacto, e nas 134 páginas do livro (Companhia das Letras, 1990) cria este personagem antipático e fascinante. Seu romance é a história de um fanático que a certa altura da vida, por motivos inexplicáveis, deixa sua maior obsessão se perder. Após a morte de Utz, ninguém (nem mesmo as autoridades comunistas) tem a menor idéia do que foi feito de sua coleção, desaparecida tão misteriosamente quanto o famoso Salão de Âmbar russo, um tesouro que sumiu, não se sabe onde, nem como, nem através de quem, durante a II Guerra Mundial.

O estilo de Chatwin neste livro é notável. É como se ele tivesse escrito um livro de 600 páginas, por alguma razão não pudesse publicá-lo, e tivesse resumido cada um dos seus parágrafos numa frase. Tudo é curto. Mesmo as cenas de vinte páginas nos dão a impressão de terem sido muito mais longas. Tudo aparece ali resumido, condensado, concentrado em frases límpidas, claras, que dão uma informação, passam para a próxima e não tocam mais no assunto. Não parece um romance, geralmente um gênero acumulativo, em que as informações são reiteradas de diferentes formas. O livro de Chatwin é o contrário disto.

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