segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

1474) “O Pequeno Soldado” (4.12.2007)


Em seu segundo filme, Jean-Luc Godard continua mostrando, como em Acossado, um indivíduo livre, incomodado pela própria liberdade, e sempre em choque com quem tenta controlá-lo. Desta vez ele troca o romance policial “noir” pelo romance político: Bruno Forestier é um francês meio marginal que, refugiado na Suíça, é chantageado por um grupo argelino para matar um inimigo político. O filme mostra como Bruno, meio absurdamente, consegue se indispor com os dois lados do conflito, sendo torturado pelos árabes e perseguido pelos franceses, tudo em nome de uma liberdade que ele busca de modo emburrado, intuitivo, sem maiores justificações teóricas. A estética do filme policial serve a um filme político, permitindo a Godard a discussão dos temas da época (que aliás incomodou a esquerda francesa, porque mostrava um grupo esquerdista praticando a tortura) e ao mesmo tempo uma homenagem nostálgica ao cinema americano que ele admirava.

Essa situação de um personagem ambíguo, sempre a um passo de uma contradição ou de uma reviravolta, convém ao cinema (elétrico, nervoso, câmara-na-mão) que Godard estava ajudando a criar na época (o filme foi rodado em abril e maio de 1960, mas a censura só o liberou para lançamento três anos depois). Bruno já é um típico herói godardiano – o indivíduo inquieto, meio louco (Pierrot, le fou), irreverente mas inseguro, com rompantes de romantismo e de crueldade. O título do filme, e o destino trágico de sua namorada Verônica (Anna Karina) nos lembra a história do soldadinho de chumbo de Andersen: o fogo o derrete sem destruí-lo, mas destrói a dançarina de papelão.

Godard não foi apenas um destruidor e renovador de conceitos, mas um criador de modas. A sessão de fotos que Bruno faz com Verônica foi retomada tintim por tintim por Antonioni na famosa cena de Blow Up entre David Hemmings e a modelo Verushka. A de Antonioni é mais sensual; a de Godard é mais cinematográfica, pelo seu estilo fragmentado, distanciado, “cinema verdade”, quase jornalístico. Bruno ensina a Verônica que “Bach é para ser escutado às 8 da manhã, Mozart às 8 da noite, e Beethoven à meia-noite”. Os diálogos de Godard, sempre cheios de boas tiradas e de paradoxos desconcertantes, fazem um ping-pong com as belas imagens de Anna Karina, numa cena em que os personagens se revelam e se escondem mutuamente.

Godard disse certa vez (acho que em A Chinesa) que um filme poderia consistir inteiramente em pessoas lendo, diante da câmara, trechos de seus livros preferidos. O Pequeno Soldado, como todos os seus filmes, é recheado de citações: Jean Cocteau, Aragon, Paul Klee, e até mesmo uma referência de passagem ao seu camera-man, Raoul Coutard. É um cinema que mostra emoções sem emocionar, e por isso nunca agradou às platéias que vão em busca de catarse. Um cinema brechtiano no melhor sentido. Não produz a menor adrenalina, porque se dirige à nossa lucidez, e não aos nossos instintos.

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