terça-feira, 22 de setembro de 2009

1278) Afeganistão: Cabul (18.4.2007)




Quando eu tinha 7 ou 8 anos ficava de Almanaque Mundial em punho, decorando as capitais do mundo. Para quê? Não sei, mas para um agnóstico precoce um almanaque era um bom sucedâneo para as Escrituras Sagradas. Tudo que tinha ali era verdade. Sendo verdade, valia a pena saber de cor – pois nunca se sabe. 

Todo o meu conhecimento sobre o Afeganistão residia nas duas palavras acima, até o dia em que os talibãs explodiram as estátuas de Buda no flanco da montanha. Confesso que quando George W. Bush invadiu o país algum tempo depois, sob o esfarrapadíssimo pretexto da estar caçando Osama Bin Laden, pensei: “Bem feito para todos dois”.

O que aconteceu foi que de repente o Afeganistão começou a existir, não só para mim, mas para o mundo ocidental em peso. Prova disto é a quantidade de livros com “Cabul” no título que a gente encontra no balcão da livraria. 

O mais conhecido é O livreiro de Cabul, reportagem de uma jornalista norueguesa que ficou algum tempo hospedada na casa do tal livreiro, e depois escreveu um livro, o qual tem vendido que só pipoca em comédia. 

Em princípio o livro seria uma louvação do esforço do livreiro para manter acesa (digamos) a chama da cultura num país devastado pela intolerância religiosa e depois pela guerra; mas a jornalista, norueguesa que é, não foi embora sem fazer suas críticas ao machismo e ao patriarcalismo local. Vai daí que agora surge outro livro: Eu sou o livreiro de Cabul, em que o personagem do primeiro contesta a norueguesa e defende seus próprios valores.

Cabul no Inverno é um relato (meio pessimista, ao que parece) do pós-guerra no país, e acaba de chegar às livrarias As andorinhas de Cabul, um romance que se passa no Afeganistão pré-invasão norte-americana. E tem também Mulheres de Cabul, outra reportagem de viés feminista, retratando as muitas repressões específicas sobre as mulheres afegãs, cujo destino popularizou no Ocidente, nos últimos anos, outra palavra: “burka”. 

E na capa deste último livro vi uma foto que me deu um sobressalto. A foto mostra algumas meninas, trajando a pesada burka das mulheres afegãs, amontoadas em um lugar qualquer e fotografadas de perto, olhando para a câmera.

Esta foto me lembrou de imediato outra, parte da famosa série tirada pelo fotógrafo Flávio de Barros na Campanha de Canudos. É a foto das pessoas aprisionadas pelas tropas federais nos últimos dias de combate no Belo Monte: uma pequena clareira com centenas de mulheres e crianças andrajosas sentadas no chão. 

Um detalhe desta foto, ampliado, foi utilizado na capa da edição dos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles sobre a Guerra de Canudos. É a imagem de uma mulher inesperadamente bela, com duas crianças, o olhar abatido, sem rumo. As duas fotos são reproduzidas em tom sépia, e em ambas existe a mesma granulação, os mesmos andrajos, a mesma expressão perdida. 

Dá o que pensar, cem anos depois. Afeganistão: Canudos.






1277) A via-crucis de Romário (17.4.2007)



Escrevi aqui (“A romaria de Romário”, 6 de fevereiro) sobre a campanha do grande Baixinho rumo ao seu milésimo gol. Tudo estava bem encaminhado. Romário marcou 9 gols em apenas 3 jogos, contando até (ninguém me convence do contrário) com uma pequena colaboração dos juízes (marcando pênaltis e mais pênaltis) e de alguns goleiros que iam nas bolas sem muita convicção, em jogos cujo resultado já estava definido, e um gol a mais não faria diferença.

Quando ele atingiu o 998, o Rio de Janeiro (cidade movida a marketing) se mobilizou inteiro para o milésimo. Quem não mora na cidade não tem a proporção da coisa; ouve o alarido das tevês e das rádios, mas ouve à distância. Num dos jogos em que ele poderia ter o feito o Gol Mil, saí passeando pelas ruas do bairro do Flamengo, num domingo às seis da tarde, e onde houvesse um TV ligada as calçadas estavam cheias de cadeiras, e de gente em pé, assistindo e esperando. E não eram apenas os futeboleiros habituais. Vi famílias inteiras, o cara levando a mulher, os filhos pequenos sentados no colo... Tudo isto para quê? Para um dia o menino dizer, aos cinqüenta anos: “Eu vi o gol mil do Romário”.

Por enquanto ninguém viu ainda, e eu culpo o próprio Baixinho. Na semana que antecedeu o jogo Vasco x Flamengo, quando ele tinha 998, o “Globo Esporte” descobriu um gol que a equipe dele não tinha computado, o que elevaria o número para 999. Marrento, ele recusou e devolveu o presente: “Fica de lambuja”, disse ele ao microfone. No domingo, o Vasco deu uma sapatada de 3x0 no Flamengo, e ele fez o terceiro gol, um golaço. Tivesse aceito o gol recém-descoberto, aquele teria sido o Gol Mil, e era um gol para entrar na História, o terceiro de uma vitória esmagadora sobre o maior rival. Haveria flashes espoucando até agora.

Mas não quis. Não quis, e daí em diante, como dizem os jogadores, “a bola não quis mais entrar”. Jogos e mais jogos sem nada acontecer, inclusive este último Vasco 4x4 Botafogo, em que durante os 90 minutos Romário ficou com a bola (segundo a TV-Globo) exatamente 10 segundos, o tempo de driblar um zagueiro e chutar por cima do gol. O Vasco perdeu nos pênaltis, caiu fora do Campeonato, e a equipe de produção do Baixinho ficou com uma festa adiada nas mãos. Pior são os técnicos de marketing dizendo cobras-e-lagartos dele, dizendo que o rapaz amarelou. Pois é, agora, só em maio.

Quando vocês revirem os gols e as jogadas fantásticas de Pelé na Copa de 70 (o chute a gol do meio de campo, o drible de corpo no goleiro uruguaio, o salto de dois metros para cabecear contra o gol da Itália) lembrem que aquele cara tinha 29 anos e mil gols no currículo. Estava num clímax que ninguém jamais igualou. Romário merece fazer mil gols, e até mais. O que não merece é passar por um sofrimento tão grande. O peso do marketing está sendo excessivo para um cara que tem 41 anos em cada panturrilha.

1276) A areia da ampulheta (15.4.2007)



Muita gente experimenta a sensação de que, à medida que os anos passam, vão ficando cada vez mais curtos. Tenho várias teorias para explicar este fato inusitado. Quando tínhamos dez anos de idade, um ano parecia uma coisa interminável, que não iria acabar nunca. Pensávamos nas férias de fim de ano e achávamos que quando elas chegassem estaríamos decrépitos, de barbas brancas. Hoje, doze meses passam assim: vupt! Quando a gente menos imagina, lá vem a Micarande de novo.

Leon Tolstoi tinha uma boa teoria, baseada nas proporções. Dizia ele: “Para um menino de cinco anos, um ano é 1/5 do tempo que ele experimentou, ou seja, é muita coisa. Para um velho de 80 anos, é apenas 1/80”. Faz sentido, porque corrobora uma verdade intuitiva que descobri sozinho: nossa mente desconhece o Passado e o Futuro, conhece apenas o Presente, e este corresponde à memória de todas as nossas experiências. Tolstoi aos 80 anos tinha um Presente com esta mesma extensão, quase incomensurável, mas o preço disto era que um ano, lá dentro, sumia de vista.

Há teorias segundo as quais os anos estão mais curtos devido a um processo astronômico qualquer, e que nossos calendários e a nomenclatura das quatro estações não correspondem mais às voltas da Terra em torno do Sol. Mas a Ciência discrepa.

Outra teoria diz: imagine uma ampulheta, um relógio-de-areia. A parte de cima está cheia de areia, a qual começa a escorrer, num filete fininho, pelo orifício, para se depositar na metade de baixo. A areia da parte de cima foi cuidadosamente nivelada, de modo que corresponde a um círculo colocado num plano horizontal. Este círculo é Um Ano (ou um dia, ou um mês, o que quisermos). Seu diâmetro depende de quê? Depende da quantidade de areia que resta para se escoar. À medida que lá embaixo a areia vai escoando, o volume total da parte de cima se reduz, a areia como um todo vai descendo, e o círculo plano da sua superfície vai se reduzindo em tamanho. O sujeito olha para o lado de repente e pensa: “Oi... Diminuiu?!”

Esta redução explica também a sensação que temos, ao longo da vida, de que o mundo vai ficando pequeno. As distâncias físicas diminuem, porque automóveis e aviões são mais rápidos. As distâncias psicológicas também, graças ao fax, ao DDD e DDI, à Internet, ao Skype. A cada encolhimento do Espaço, corresponde um encolhimento proporcional do Tempo. Se hoje a gente transpõe mil quilômetros num pulo, por que não transporia mil dias?

E a vida segue, construindo seus castelos numa areia que não pára de se escoar por um ralo invisível, numa hemorragia poenta, paciente e fatal. Daí a pouco o círculo de cima já está deste tamanhinho, e parece ainda menor pela quantidade de coisas que ali edificamos, planos, projetos, sonhos, tudo já se atravancando e se esbarrando num circulozinho cada vez menor; mas já nos acostumamos a ele, estamos ali há tantos anos que temos todo o direito de achar que ele vai permanecer ali ininterrupt