quarta-feira, 5 de agosto de 2009

1177) A arte da capa de livro (21.12.2006)



Decidir a capa de um livro é um prazer marginal (no sentido de secundário, acessório) da arte da Literatura. Há escritores que, concluído e revisado o texto final do romance, entregam-se com deleite à dupla tarefa de escolher um título e bolar uma capa. São dois detalhes minúsculos mais essenciais. O título é o rosto definitivo de uma obra; a capa é um rosto provisório. Muitos livros que tenho comprei duas vezes, só porque a capa da outra edição era boa. E sempre procurei interferir na criação das capas dos meus livros, embora nem sempre com os melhores resultados. São tantos fatores envolvidos (tipo de papel, tipo de tinta, cores finais, fontes, relação da capa com o volume final do livro, etc.) que nem sempre a escolha de uma boa foto ou desenho é o bastante para dar a idéia que a gente imagina.

Para os que gostam de viajar mentalmente nesta sutilíssima arte, recomendo o blog “Book Covers” (em: http://covers.fwis.com/), do capista Ben Pieratt, com um design enxuto e minimalista. A gente entra numa página com várias capas, e clica em cada uma para ver os comentários, que vêm junto a uma reprodução da capa com os dados essenciais (título, autor, editora, autor da capa). Alguns dos leitores que comentam são também designers ou capistas. Depois de ver os comentários que interessam, clica-se no botãozinho preto “Next” para ver novo conjunto de capas.

Atualmente estão lá os comentários sobre Happiness de Richard Layard, em que o capista consegue produzir um gráfico estatístico em forma de sorriso; Spook de Mary Roach, história de terror em que os dois “OO” do título são convertidos em espelhos de papel laminado que lembram olhos; Against the Day de Thomas Pynchon que aparentemente só tem o título e o nome do autor (e precisava mais?), mas os comentaristas tiram leite de pedra e descobrem uma série de detalhes significantes; Honored Guest de Joy Williams, com uma bela foto em P&B e uma seleção de cores totalmente equivocada; History Lesson for Girls de Jasmine Lee, uma estranha foto meio surrealista, com o braço de uma moça e a cabeça de um cavalo que surgem das bordas e se encontram no centro; What Now de Marc Estes, em que as letras do título (“E agora?”) são quebradas e reorganizadas pelas bordas da capa, sendo tudo aplicado sobre a imagem de um clip de papel, que é um tema recorrente no livro (o autor mostra como um clip é um fio de metal que, dobrado daquela forma, ganha uma função e até mesmo qualidades físicas que não tinha antes).

Cresci vendo as capas de Eugênio Hirsch para os livros da Civilização Brasileira, de Nils para os da Editora Vecchi, de Benício para milhares de livrinhos de bolso... O capista não é apenas um cara que diagrama informações ou ilustra uma cena da história. Cabe a ele captar o espírito do livro (erudito, popularesco, abstrato, emotivo, etc.) e recriá-lo noutra linguagem, com um mínimo de recursos. O capista é o primeiro crítico de todo livro.

1176) Mestre Sivuca (20.12.2006)




Num ambiente ruidoso como o da música popular, Sivuca era uma presença de poucos decibéis. Sempre tranqüilo, de fala mansa, não fazia nenhum alarido. Mesmo tendo opiniões claras e posições firmes, não dava entrevistas bombásticas, não se envolvia em polêmicas. 

Só se tornava o centro das atenções quando empunhava (ou melhor, sobraçava) o instrumento e fazia brotar dele um niágara de melodias que pareciam estar apenas esperando seu toque nas teclas para brotarem já prontas, irretocáveis.

Lembro de ouvir, na infância, meus pais comentando terem visto Sivuca tocar nas festas do extinto Campinense Clube, ali na Praça Coronel Antonio Pessoa, e de tê-lo visto tocando na Praça da Bandeira, em algum comício ou festa popular. 

O primeiro show dele que vi pra valer foi o seu encontro histórico com Hermeto Paschoal, no Teatro Castro Alves de Salvador, lá pelo fim dos anos 1970. Show inesquecível, pelo jogo extremo de semelhanças e diferenças entre os dois grandes artistas. 

Sivuca era o apolíneo, o clássico, o executante que consegue a façanha de caminhar sobre as águas da perfeição. 

Hermeto era o dionisíaco, o romântico, o vanguardista que experimenta tudo e joga suas criações para o alto, para ver quantas delas conseguem cair de pé e sair andando. 

Juntos, no palco, idênticos e distintos, pareciam dois irmãos gêmeos que foram criados em planetas diferentes.

Foi a época do seu disco famoso com Rosinha de Valença, em que o Brasil inteiro ficou conhecendo seu arranjo multi-nacional para “Vassourinhas” (em forma de música indiana, escocesa, argentina, francesa, etc.) e ouviu pela primeira vez a obra-prima “Feira de Mangaio”, sua mais bela parceria com Glorinha. 

Para a crítica musical brasileira, que chegara às redações quando ele estava fora do Brasil, Sivuca foi uma revelação, mostrando, de um momento para o outro, ser um coringa capaz de fazer forró, jazz, frevo, valsa, o escambau. 

Para nós, paraibanos, ele era gente de casa, carta antiga do baralho, uma espécie de rei-de-ouros capaz de transformar em Arte tudo que tocava.

A sanfona de Sivuca tinha um milhão de teclas. Eu, coitado, vivo aqui batendo em três ou quatro. Uma delas (que meus leitores já conhecem de sobra) é a quantidade de meninos de gênio que vivem de bobeira por aí, Paraíba afora, doidos que alguém lhes dê uma luz, um instrumento, uma informação. 

Numa entrevista, Sivuca disse uma vez que na sua casa, na infância, não se ouvia música porque não tinha eletricidade; ele só via às vezes alguém tocando violão, ou um sanfoneiro itinerante que passava por lá. O jornalista pergunta-lhe o que faltava e ele diz: “Faltava informação somente”. 

Faltava a possibilidade de acessar o mundo. Quando essa possibilidade surge, o mundo fica sabendo, como soube com Sivuca, do que são capazes os nossos pequenos paraibanos, os nossos meninos e meninas que, no final das contas, são a coisa mais valiosa com que a pequenina Paraíba pode contribuir para enriquecer o mundo.





1175) Colorado voltou campeão! (19.12.2006)



Respeite o futebol brasileiro, mundiça! O Internacional de Porto Alegre repetiu a façanha do São Paulo no ano passado, só que de maneira mais convincente. Em 2005, o São Paulo enfrentou um Liverpool com muito mais volume de jogo, soube se segurar, e fez um gol de contra-ataque no momento certo. Anteontem, a mesma coisa aconteceu com o Inter, sendo que a equipe do Barcelona é muitíssimo superior à do Liverpool, e o Inter conseguiu não apenas se defender muito bem, mas chutou mais a gol do que o São Paulo, embora sempre de maneira torta. Um contra-ataque veloz e inteligente deu-lhe um gol a menos de dez minutos do final, e eu ficaria muito admirado se um time dirigido por Abel não conseguisse segurar um placar dessa importância por dez minutos.

Quase não consegue. O Barcelona tem jogadores muito melhores, e faltou-lhe sorte principalmente numa falta batida por Ronaldinho Gaúcho que passou rente ao poste. Clemer, que tinha falhado feio no gol do Al-Ahli na semifinal, redimiu-se com atuação seguríssima e com duas grandes defesas em chutes de Xavi e Deco (um pouco antes e logo após o gol – duas defesas decisivas). Mas o Barcelona parecia estar vivendo o seu momento de Seleção Brasileira. Entrou para dar show, mas dentro do campo havia um monte de caras chatos atrapalhando. É um erro comum dos grandes times, esquecer que o show tem que ser dado em cima dos “caras chatos”. Futebol é espetáculo, é exibição? É, mas não é um espetáculo solo. É uma exibição de habilidade em não se deixar marcar pelos caras chatos. E o Barça não conseguiu.

A imprensa brasileira comentou que o Inter de domingo passado foi o primeiro clube brasileiro a disputar a final do Mundial Interclubes sem contar com nenhum jogador de seleção. O Inter ainda perdeu, para esta decisão, jogadores importantes na campanha da Libertadores, como foram Rafael Sóbis, Renteria e Tinga. Na semifinal, seus dois gols foram marcados por jogadores novatos, com 17 e 19 anos. Eu vi o Campeonato Brasileiro todo, este ano, mas se me perguntassem, antes desta final, os nomes dos jogadores do Inter eu só lembraria Clemer, Fernandão e Fabiano Eller. É um time sem estrelas, mas com muita aplicação tática, muita disposição, e talento na conta-do-chá. Foi o que bastou para derrotar o melhor time do mundo.

Todo mundo esperava vitória do Barcelona, inclusive eu. Seria o mais lógico. Bastaria um daqueles chutes catalães ter entrado no primeiro tempo para que o jogo e o resultado fossem muito diferentes. Paciência. Como disseram e repetiram os colorados: “Se os dois times fôssem disputar dez jogos, o Barcelona ganharia nove, mas em um único jogo, as chances são meio-a-meio”. Um raciocínio matemático perfeito. Um lance de dados jamais abolirá o Acaso; mas o Acaso tem um peso muito maior num lance único. Numa sucessão de lances, os resultados tendem a se agrupar de acordo com uma curva estatisticamente previsível.

1174) A arte e o pantim (17.12.2006)




Entre os 11 e os 16 anos não fiz outra coisa senão jogar bola e brincar nos descampados do Alto Branco. Naquele tempo era um bairro deserto, bravio, com uma casa aqui, um pedaço de rua acolá, estradas de areia branca, vastos matagais de jurubebas e muçambês. 

As enxurradas de chuva desciam lá do alto, criando córregos, escavando “canyons” na terra fofa, e no meio desses desfiladeiros cercados de rochedos perseguíamos índios apaches e invasores alienígenas. 

De vez em quando tinha uma faixa de terra batida ou um trecho de grama vagamente retangular que usávamos como campos de pelada, dos quais costumo extrair metáforas para minhas divagações filosóficas, assim com Sartre extraía as suas do comportamento das pessoas nos cafés parisienses.

Toda vez que ligo a MTV hoje em dia e vejo esses grupos de rock atual me lembro de um guri amigo meu, cujo nome não revelarei, que era muito ruim de bola mas adorava jogar futebol. 

Jogava para se divertir, sem se preocupar muito com o resultado, e apesar de ser um cara legal era sempre um dos últimos a serem tirados no par-ou-ímpar. Quando não tínhamos outro jeito senão botá-lo de goleiro, era preciso redobrar de cuidados, porque ao vir um chute ele armava o pulo, dava uma cambalhota acrobática que lembrava os vôos de Pompéia ou Castilho, e caía rolando no chão, cheio de entusiasmo. 

Evitar o gol nem lhe passava pela cabeça. Zezito Pé-de-Palheta, filho de Dona Joana e craque consumado, ficava furioso: “Esse menino véi não sabe o que é defender uma bola! De goleiro ele só sabe o pantim”.

Assim é o rock de hoje, meus amigos. Os jovens roqueiros que arrivam no mercado já sabem de cor e salteado como se vestir, como andar, como falar, como dar entrevistas, como se comportar em público, como dizer graçolas, como fazer caretas, como fazer cara de mau, como fazer cara-de-atitude... 

Só não sabem fazer música (rock é música, caso vocês não saibam, assim como livro policial é literatura, cordel é poesia e quadrinhos é arte visual). 

Na verdade seguem o dito de Raul Seixas: não são músicos, são atores que fazem o papel de músicos. Para terem o direito de subir num palco, aparecer na TV, encher a cara de cerveja e arrebentar quartos de hotel.

Achar que ser roqueiro é isto é como observar de longe a vida de certos jogadores famosos e achar que ser craque de futebol é freqüentar discotecas, namorar modelos, fazer propaganda de trinta coisas diferentes, participar de obras beneficentes, sair em capa de revistas, dirigir carrões, e no domingo não jogar futebol, fazer só o pantim.

Despertai, rapaziada! Estais ouvindo o galo cantar e não sabeis onde. Rock, futebol, política, hoje em dia está tudo invadido pelo marketing, pela performance, pela composição-de-imagem, pela arte da postura, por toda uma casca externa de aparências e efeitos especiais, tendo dentro de si um enorme oco. Como dizia Lobão, que entende de rock mais do que eu: “É tudo pose, é tudo pose, é tudo pose”.





 

1173) Os rituais da Ciência (16.12.2006)



Mesmo na atividade científica, que deveria ser a mais racional de todas, existe uma alta dose de irracionalismo sob a forma de rituais burocraticamente obedecidos, repetição de processos cuja origem ninguém lembra e cuja função ninguém conseguiria explicar, caso alguém perguntasse. Na prática de laboratório, por exemplo, sobrevivem traços que nos fazem lembrar o material arcaico do folclore, das superstições, das oferendas agrícolas. Quando uma técnica é criada, mostra-se eficaz, e se consolida, ela muitas vezes se transforma num “pacote” de etapas sucessivas que é cegamente passado adiante. Às vezes, o mundo muda, as circunstâncias mudam, mas o ritual se mantém intacto, não sofre revisões. As pessoas aprendem o processo sem perguntar o “por que” de cada detalhe. Anos depois, passam o pacote adiante para seus alunos ou seus assistentes.

Na sua deliciosa e instrutiva antologia A Literary Companion to Science (Norton, Londres & New York, 1989), Walter Gratzer cita dois exemplos extraídos do livro de Primo Levi A Tabela Periódica. Diz Levi que viu num livro antigo uma recomendação para que, durante a fervura do óleo de linhaça, fossem colocadas na fervura duas rodelas de cebola, sem explicar para quê. Depois de muito pesquisar e indagar, ele obteve de um mestre já idoso a explicação. Muitos anos atrás, não se usavam termômetros durante a fervura do óleo. O “ponto” certo de interrompê-la era determinado pela introdução das rodelas de cebola. Quando elas começavam a fritar, estava na hora de parar a fervura do óleo. O tempo passou, os equipamentos foram modernizados, e a cebola foi ficando – sem ninguém lembrar por quê.

O outro exemplo diz respeito ao verniz de copal, que os britânicos importavam de Madagascar, Congo, Serra Leoa. Era uma resina vegetal fóssil, duríssima, e tinha de ser fervida até derreter e chegar ao ponto certo de produzir o verniz (que, aplicado na indústria de calçados, valia uma fortuna). Por tentativa e erro descobriu-se (com pesagens sucessivas durante a fervura) que o “ponto” era quando a resina tinha perdido 16% de seu peso. Isto virou uma norma. Por volta de 1940, a resina foi substituída por outros preparados químicos que custavam menos, eram mais fáceis de produzir e davam o mesmo efeito. Mas até 1953 se manteve o hábito de fazer estas novas resinas perderem 16% do seu peso inicial durante a fervura, coisa agora totalmente desnecessária!

Já sei que o pessoal meio artista, que gosta de criticar o bitolamento da mente científica, vai ver nisto uma prova do quanto a Ciência é limitada. Ledo engano, camaradas. Erros deste tipo não ocorrem com quem é excessivamente científico, mas com que o é pouco. Com quem não questiona práticas tradicionais. Com quem não pergunta o “por quê” quando está aprendendo uma técnica. Com quem comete o pior pecado de um cientista: aceitar algo sem examinar, sem pôr à prova, sem fazer passar pelo Teste da Experiência.

1172) “Volver” de Almodóvar (15.12.2006)




É um dos melhores filmes que vi de Almodóvar, juntamente com Tudo sobre sua mãe e Carne trêmula. O diretor espanhol tem uma carreira irregular, a meu ver, com filmes que poderiam ser bons mas se perdem em exageros caricaturais. Dá a mesma impressão dos filmes atuais de Woody Allen: o cineasta faz aquilo para agradar a meia-dúzia de amigos que têm gostos parecidos com o seu (o que não é propriamente um defeito) mas que estão dispostos a perdoar qualquer exagero e a elogiar qualquer coisa (e quem tem amigos assim não precisa de inimigos).

Volver começa como um drama familiar, numa daquelas famílias almodovarianas que parecem consistir unicamente de mulheres. Daí a pouco se transforma numa história de crime, e mais adiante numa história de fantasmas. Estas guinadas, ao contrário do que pode parecer, não só são plenamente justificadas pela lógica interna da história, como não têm a menor preocupação de fazer “cinema de gênero”, ou seja, seguir de perto as fórmulas de um tipo de filme. Tanto o assassinato quanto a assombração são intensamente almodovarianos, e a leve inverossimilhança de algumas situações se impõe ao espectador, como em alguns filmes de Hitchcock, pela narrativa impecável, rápida, sem hesitações, e pelas atuações brilhantes de Penélope Cruz e Lola Dueñas, que interpretam as irmãs Raimunda e Sole.

Almodóvar retorna neste filme a um desses mundos femininos em que os homens são coadjuvantes, descartáveis como peças do mobiliário. Mundos em que as mulheres agem sozinhas e conferenciam em grupo; resolvem e providenciam tudo; tomam decisões, assumem responsabilidades, comemoram seus triunfos e pagam caros pelos seus erros. Difere de outros filmes dele por ser uma história sem sexo tórrido, sem paixões arrebatadoras, sem amor. O que existe disto permanece fora de cena, ou implícito no passado. Mas retornam outros temas recorrentes do diretor, como o dos mistérios mal-resolvidos do passado, que não deixam ninguém viver em paz (como no recente Má educação), e as tragédias que parecem destinadas a repetir-se eternamente.

A lenta transição do sobrenatural para o cotidiano é um dos triunfos do filme, e não sei de muitos roteiristas que conseguissem resolver de forma tão satisfatória (e sem solavancos) a fusão entre uma história de fantasma e uma história de crime não-esclarecido. O cinema de personagens, quando bem realizado, tende muitas vezes a ameaçar a eficácia do roteiro. Quando o roteiro (no sentido de enredo bem-amarrado) assume o comando, os personagens ficam manietados, comportando-se “como a história exige”; quando os personagens têm rédea solta, o roteiro vai para o espaço, porque cada um age por si. Almodóvar consegue em seus melhores filmes o difícil equilíbrio entre uma história complexa e bem urdida, que resiste a releituras e exames de coerência, e a aparente imprevisibilidade da vida real através de personagens fortes e de grandes atores. Ou atrizes.

1171) A revista “Piauí” (14.12.2006)



Já saíram nas bancas dois números desta nova revista carioca, que tem uma numerosa equipe mas é conhecida, pelo menos entre os que ma indicaram, como “a revista de João Moreira Salles” (o cineasta de Notícias de uma Guerra Particular, e irmão de Walter Salles Jr.). Seu projeto gráfico lembra um pouco a Caros Amigos e parece um aprimoramento da revista Argumento, lançada pela livraria homônima do Leblon. Uma das coisas que me agradam nela é a variedade de temas e de formas (ensaio, poesia, foto, quadrinhos, reportagem, etc.). Outra é o papel fosco, discreto, agradabilíssimo à leitura. Tenho um tremendo preconceito contra o papel brilhante usado por quase todas as nossas revistas que se pretendem chiques, um papel que nos força a ficar procurando uma posição adequada que não reflita a luz.

O número 1, de outubro (na capa um pingüim de geladeira), traz boas e informativas matérias sobre o engenheiro brasileiro seqüestrado no Iraque, sobre a indústria do telemarketing, sobre o primeiro jornalista americano que entrevistou Fidel Castro e “passou primeira” no mito da guerrilha cubana. Há um longo texto autobiográfico de Ivan Lessa retornando ao Rio depois de 28 anos para constatar que seus amigos envelheceram e que a cidade está cheia de nordestinos. Há um texto divertidíssimo sobre o país imaginário da Molvânia; parece uma mistura de Campos de Carvalho com Veríssimo.

O número 2, de novembro (na capa, Che Guevara usando uma camiseta dos Simpsons) tem uma ótima HQ de Angeli sobre a música “Satisfaction” dos Rolling Stones, um excelente e inesgotável artigo de Vanessa Barbara sobre palíndromos (tem mais coisas, mas só costumo comentar o que de fato li). Nas duas revistas, pequenas HQs de Edward Sorel (mordazes, telegráficas) sobre Bertolt Brecht e Carl Jung. Lamento que uma das seções mais interessantes, “Esquina”, com pequenos textos sobre assuntos variados, não seja assinada. É lá que encontramos no número 2 duas matérias irônicas e melancólicas (que devem ser lidas em conjunto) sobre Gillo Pontecorvo (um cineasta de esquerda que regrediu à obscuridade) e Diduzinho Souza Campos (um playboy carioca falido).

Um leitor com poder aquisitivo razoável que se dispusesse a ler todas as revistas de cultura, arte e ciência que têm surgido no mercado nestes últimos anos se veria talvez impossibilitado, por falta de tempo, de ler um livro sequer. São revistas de História, de Ciência, de Literatura, de Cinema, do escambau. A maioria se distingue por uma área temática restrita, como é o caso da Scientific American brasileira e suas excelentes edições especiais sobre etnomatemática, etnoastronomia, etc. Uma revista pluralista como “Piauí” é uma cartada no escuro, porque tanto pode atrair muita gente como não atrair ninguém. São riscos de um mercado onde nem sempre a boa qualidade dos textos ou do projeto gráfico garantem a sobrevivência da publicação.

1170) A morte quântica de James Kim (13.12.2006)


(James Kim)

Suponhamos, leitor, que você está viajando de carro, com sua esposa e duas filhas pequenas. A certa altura, você pega uma entrada errada, sem perceber, e segue em frente, certo de que chegará em algumas horas à cidade para onde vai. Mas você agora está na verdade penetrando num Parque Nacional, uma reserva ecológica pouco habitada. Quando percebe que se perdeu, seus celulares já estão fora de área. Você faz meia-volta para procurar a rodovia principal, mas (“Ih, devia ter abastecido naquele posto!”) sua gasolina está acabando. E começa a nevar. No carro não há comida alguma além de papinhas de bebê, biscoitos e água mineral. Nenhuma comunicação com o mundo. Você estaciona num local aberto de onde possa ser visto por um possível helicóptero de busca; mas como dar o alarme? Passa-se um dia; passam-se dois, três. O frio é intenso, mesmo dentro do carro. Sua mulher e suas filhas olham para você, esperando uma decisão. Você continua esperando, ou deixa-as ali e parte em busca de socorro?

Este é, cientificamente, um ponto de decisão, de mutação, de inflexão. Um momento em que qualquer decisão tomada conduzirá a um desfecho diferente. É um momento quântico no sentido de que algo já começou a acontecer, mas você não sabe o quê. Os dados de que dispõe são insuficientes. Quanto durará a nevasca? Alguém já deu o alarme? Queimar os pneus, de um em um, lhes dará calor pelo tempo necessário? Em que direção, e a que distância, fica o socorro mais próximo? Em suma: é mais certo esperar, ou ir à luta?

Foi isto que aconteceu semanas atrás com o jornalista James Kim, que se perdeu num parque do Oregon. Kim deixou a família no carro e foi em busca de socorro. Pouco tempo depois, o carro foi encontrado pelas equipes de busca e a família foi salva. O corpo de Kim foi encontrado dias mais tarde, junto ao riacho cujo curso ele estava acompanhando, esperando achar alguém. Kim morreu de hipotermia a cerca de uma milha de distância de um abrigo onde teria podido encontrar calor e comida. É fácil agora, depois que se sabe o que aconteceu (depois que a função colapsou) dizer que a escolha de Kim foi errada. Talvez ele tenha cedido àquele impulso (ao qual imagino que eu talvez cedesse também) de pensar: “Ora que diabo, estamos parados aqui há dias e nada acontece! Preciso fazer alguma coisa!” É uma decisão sensata, emocionalmente justificada e racionalmente aceitável. Mas sabemos agora que foi a decisão errada, e que o certo seria ter paciência e esperar mais um pouco.

Até mesmo aqui, no universo macro, tão distante do mundo subatômico, vemo-nos às vezes no interior de uma função dinâmica, complexa, que está se encaminhando para um resultado que não podemos prever mas na qual devemos interferir com a observação A ou B. E o modo como escolhemos conferir o resultado final sempre influencia, de um modo ou de outro, o que acontecerá (e que, de certa maneira, já tinha começado a acontecer).