quinta-feira, 2 de abril de 2009

0941) Os Afro-Sambas (23.3.2006)



Há discos que ouvi muitíssimo na época do LP mas que não consigo encontrar em CD, ou porque não foram lançados neste formato, ou porque o foram através de selos com pouca penetração no mercado, sendo assim virtualmente invisíveis. Isto força a gente a recorrer a colecionadores, que tiram cópias digitais das suas preciosidades de arquivo. (Não, amigos: isto NÃO É pirataria.) Tenho meu fornecedor de rock, meu fornecedor de forró, meu fornecedor de MPB... Há pouco, consegui botar as mãos numa raridade.

Os Afro-Sambas, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, é um disco gravado nos primeiros dias de janeiro de 1966, com produção de Roberto Quartin e arranjos de Guerra Peixe. São apenas oito canções, mas pelo que sei o impacto que elas produziram ainda não parou de ressoar. Em seu livro Chega de Saudade, Ruy Castro comenta que nessa época Vinicius e Baden resolveram se trancar num apartamento no Rio para compor, levando consigo várias caixas de uísque. Os afro-sambas se devem em partes iguais a eles e ao médico que os manteve vivos durante o ininterrupto pileque.

No texto de contracapa (datado de fevereiro de 1966), Vinicius afirma que sua parceria com Baden já datava de quatro anos atrás, e que já desde aquela época gostavam de ouvir gravações ao vivo de cantos do candomblé e do samba-de-roda baiano, enviadas por Carlos Coqueijo. Dessa época surgiram sambas de temática africana como “Berimbau” e “Samba da Bênção”, que bem poderiam ter sido também incluídos neste disco, porque musicalmente pertencem ao mesmo ciclo. Imagino que tenha sido este o primeiro disco em que Vinicius aparece como intérprete do começo ao fim, mesmo secundado pelo Quarteto em Cy. Os arranjos e da gravação têm uma qualidade um tanto artesanal. E, por trás de tudo, o violão de Baden Powell, costurando a melodia com os baixos (“Canto de Xangô”), com lapadas percussivas (“Canto de Ossanha”), ou sublinhando a melodia lindíssima de “Canto de Iemanjá”.

Os “afro-sambas” tiveram uma bela gravação recente por Mônica Salmaso, mas esta gravação original com Baden e Vinicius tem a força primitiva e imediata daquelas canções que valem, mais do que pela roupagem musical que recebem, pela novidade bruta do material poético e melódico com que trabalham. O disco surgiu num momento em que a classe média urbana e intelectualizada começou a enxergar a cultura popular, negra, rural, com olhos de curiosidade e respeito. Dizem alguns estudiosos, não sei se com razão, que grande parte da nossa cultura resulta de releituras populares das idéias, das formas e dos temas produzidos na cultura erudita. Se for assim, maior ainda a importância de uma releitura erudita das idéias, formas e temas que surgem da cultura popular. O próprio termo “afro-samba” é elucidativo, por reconhecer que o samba já era àquela altura algo assimilado e exercido pela cultura urbana e branca, e era necessário injetar nele um pouco de África e de memória negra.

0940) Presente e passado narrativo (22.3.2006)


(Ursula Le Guin)

A leitura precoce dos contos de Machado de Assis me chamou desde cedo a atenção para a possibilidade de optar entre o presente e o passado narrativo. Poucos escritores alternam estes dois tempos com tal maestria e eficácia. A forma mais tradicional de narrar é contar os fatos no passado, como faz Machado em “O Diplomático”: “A preta entrou na sala de jantar, chegou-se à mesa rodeada de gente, e falou baixinho à senhora. Parece que lhe pedia alguma cousa urgente, porque a senhora levantou-se logo”. É o beabá narrativo: contar uma história “que já aconteceu”, mas de modo tão natural e vívido que dê ao leitor a impressão de que está acontecendo agora.

Bem diverso é o senso de imediatismo, de presença, que nos produz a narrativa no presente do indicativo, como faz o mestre em “Habilidoso”: “Paremos neste beco. Há aqui uma loja de trastes velhos, e duas dúzias de casas pequenas, formando tudo uma espécie de mundo insulado. Choveu de noite, e o sol ainda não acabou de secar a lama da rua, nem o par de calças que ali pende de uma janela, ensaboado de fresco”. Com poucas palavras, o leitor sente que “está lá”, dentro da história.

Os dois tempos podem se misturar lindamente, e mais uma vez recorro a Machado, agora em “O segredo de Augusta”: “São onze horas da manhã. D. Augusta Vasconcelos está reclinada sobre um sofá, com um livro na mão. Adelaide, sua filha, passa os dedos pelo teclado de um piano. – Papai já acordou? pergunta Adelaide à sua mãe. – Não, responde esta sem levantar os olhos do livro. / Adelaide levantou-se a foi ter com Augusta. – Mas é tão tarde, mamãe, disse ela. São onze horas. Papai dorme muito. / Augusta deixou cair o livro no regaço e disse olhando para Adelaide: -- É que naturalmente recolheu-se tarde.”

As primeiras linhas, ditas no presente, parecem um quadro, fotografia, cena estática; mas quando Adelaide se ergue e se desloca para junto da mãe, o narrador pula imediatamente para o passado narrativo, o qual é, por tradição, o modo “default” de contar histórias em nossa cultura. Transições deste tipo passam imperceptíveis pela mente do leitor, quando feitas com propriedade, e quando a opção pelo tempo narrativo é apenas uma questão de fluência estilística para o autor, e não pareça ter relevância para a história em si, para o entendimento do que está se passando.

A melhor defesa que conheço do passado narrativo foi feita por Ursula LeGuin. Diz ela que a narração no presente do indicativo “remove a história do fluxo do tempo”, limitando-o a um presente, sem passado e sem futuro. Já a narrativa no passado pressupõe dois polos: o tempo em que os fatos sucederam e o tempo em que estão sendo contados. E essa distância gera uma tensão: “a narrativa se situa no passado para que possa se permitir um movimento para diante”. Duas opções: fundir o tempo da história e o do leitor num só, ou distanciá-los, para que o tempo do leitor atraia para si o tempo da história.

0939) E o futebol do Rio, hem? (21.3.2006)


O futebol do Rio de Janeiro é um paciente terminal, sofrendo de falência múltipla dos órgãos. Escrevo estas linhas na noite do domingo, 19 de março, depois que foi definido o quadrangular decisivo da Taça Rio (2o. turno do campeonato), e cujo vencedor irá decidir o título com o Botafogo, campeão da Taça Guanabara ou 1o. turno. Pasmem, amigos. A Taça Rio será decidida entre Americano de Campos, Cabofriense, Madureira e América. Ficaram de fora os quatro reis do baralho, ou seja, Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo. (Menos mal para o Botafogo, que foi campeão do 1o. turno e vai decidir o título com um time “pequeno”).

Os quatro grandes clubes do Rio vêm sendo sangrados até a morte por grupos de cartolas que parecem encarnar uma conspiração infernal para “quebrar” o futebol do Estado. Falei acima em “falência múltipla dos órgãos” porque é a imagem que melhor descreve a situação. É como um paciente que está como todos os órgãos vitais comprometidos, e, mesmo, quando a equipe médica consegue normalizar a situação deste ou daquele, todo o seu esforço vai por terra, porque o comprometimento dos demais logo faz o órgão remediado retornar ao estado crítico de antes.

Em primeiro lugar, são os cartolas desonestos, mal-intencionados, do tipo que celebra contratos e acordos mirabolantes, milionários, para embolsar no meio do caminho enormes fatias que nunca irão aparecer nas nebulosas prestações de contas de fim-de-ano. Quando os cartolas são honestos (e muitos o são), são incompetentes: apaixonados pelo clube, deixam-se arrastar pela loucura-de-torcedor e tomam decisões catastróficas, movidos pelo desespero de conseguir resultados a curtíssimo prazo (tipo trocar de técnico na quinta-feira para tentar ganhar a decisão do título no domingo). Quando são competentes e honestos, são sabotados por certos jornalistas que não são nem uma coisa nem outra, perdem-se nas politicagens de corredores de Federação e de tribunais esportivos, ou simplesmente naufragam nos buracos-negros contábeis deixados pelas administrações anteriores.

Acendam velas votivas, amigos. Batam bombo, prometam novenas, queimem incenso, promovam rituais propiciatórios no altar de qualquer divindade, babilônica ou egípcia. Peguem-se com os deuses, com os numes tutelares, com os orixás, com os hexagramas do I-Ching, com qualquer força sobrenatural que impeça a propagação, pelo Brasil inteiro, deste vírus maligno que assola o futebol carioca. Acabaram (pelo menos por enquanto) com uma das maiores fontes de Arte que este país já teve: o futebol que nos deu Garrincha, Didi, Gérson, Zico, Roberto Dinamite, Romário e tantos outros. O Rio já foi, para o mundo do futebol, como a Grécia Antiga foi para o Teatro, a Filosofia e a Escultura. Os peladeiros que hoje entram em campo e recebem as vaias e tomates são os menos culpados. Os culpados são os caras que afundaram quatro Titanics de uma vez só.

0938) O sósia violinista (19.3.2006)




Vejo às vezes aqueles concertos de música erudita na TV Cultura. Conheço muito pouco de música erudita. Não sei distinguir autores nem estilos: se você botar uma música eu nunca vou saber se aquilo é Mozart ou Brahms, Beethoven ou Schubert. 

Mas, como qualquer sujeito criado em nossa cultura, entendo o que é a música sinfônica. É uma das muitas coisas que me seduzem pela sua beleza crua, sem análise da técnica ou subtextos de estilo ou época.

Gosto de ver na TV. No disco, aquela música parece estar brotando de algum lugar celeste, ao norte da Esfera dos Serafins e a sudoeste do Jardim do Éden. Parece que aquilo tudo sempre existiu, sem que ninguém precisasse compor ou tocar. 

Quando vejo na TV é que me dou conta da complexidade do processo, da energia exigida para que aqueles sons existam e se ergam todos ao mesmo tempo, se entrelacem, se correspondam, se afastem e reaproximem, numa tapeçaria de vibrações sonoras. 

É o pianista que numa breve pausa joga para o ar o cabelo e uma chuva de gotas de suor; são os violinistas no “acelerando”, de olho encatitado para não perder uma nota sequer; são os velhinhos dos metais que ficam na boca-de-espera para, no segundo exato, desfechar uma frase complicadíssima e depois ficar novamente em guarda... Creiam-me, amigos, é ainda mais difícil do que maracatu.

Muito tempo atrás, liguei a TV para me distrair. Estava deprimido por causa de um livro recém-publicado que passou em branco. Pensava eu: 

“Agora danou-se mesmo. Tenho a maior dificuldade para escrever um livro. Quando finalmente escrevo, ninguém publica. Quando publica, ninguém compra. Quando alguém compra, não lê. Quando lê, não entende. Quando entende, não gosta. Quando gosta, me manda um email perguntando por que é que um escritor tão genial como eu não faz mais sucesso do que Paulo Coelho”.

Voltei a olhar a orquestra, e tive um susto. Tinha um violinista que era a minha cara. Rosto, cabelo, tudo igualzinho. Fiquei com a sensação esquisita de estar contemplando um universo paralelo onde alguém me teria botado numa Escola de Música desde pequeno, e pronto, ali estava eu. Tocando um concerto de Bela Bartok! Maravilha. 

Fiquei olhando o sujeito tocar e isso me deu uma certa paz. Afinal, em que é que eu era melhor do que ele? O cara estudou pra caramba, sabe fazer um monte de coisas dificílimas, ganha a vida honestamente, e mesmo assim ninguém sabe da existência dele. 

A imensa maioria dos artistas, e artistas de talento, é assim. Só quem sabe que eles existem é a família e os amigos. Mesmo quando estão trabalhando, trabalham no meio de uma equipe enorme, e ninguém os enxerga. É o iluminador do teatro, o câmera do cinema, o backing-vocal de banda... Milhões de pessoas no mundo inteiro, fazendo arte de primeira qualidade, e ninguém sabe que eles existem. Fama coisa nenhuma. Eu não deixaria de ser violinista em minha orquestra só pra ser “aquele cara famoso porque atirou no Papa”.






0937) Bill Wyman (18.3.2006)



Ele foi o baixista dos Rolling Stones desde o começo em 1962 até 1991. Embora Mick Jagger e Keith Richards sejam considerados não apenas a cara mas também a alma da banda, diz-se que o coração da banda era a dupla silenciosa e introspectiva formada pelo baixista Wyman e o baterista Charlie Watts. Wyman abandonou os Stones depois de uma fase conturbada: choques com o egocentrismo de Jagger & Richards (que se recusavam a incluir canções suas nos álbuns), uma relação amorosa longa e problemática com uma garota de 13 anos – tão problemática que o filho de Wyman, Stephen, acabou casando com a mãe dela, que tinha 46.

Vi no ano passado uma série de especiais para TV a cabo sobre a história do Blues, em que Wyman funcionava como âncora e co-roteirista. Era um sujeito grisalho, suave, de fala mansa e bem-humorada. Nada nele fazia supor o roqueiro a quem era atribuída a façanha de ter conhecido biblicamente 265 mulheres num período de três meses de uma turnê. Ele explica: “Mick e Keith ficavam trancados compondo; Charlie era fiel à esposa; sobrava pra mim e Brian Jones”.

Wyman tinha complexo de inferioridade por sua origem operária (seu pai o tirou da escola quando ele começou a tirar notas muito boas). O rock foi uma fuga ao ambiente estreito e mesquinho onde nasceu. Era William Perks; depois que entrou na banda trocou oficialmente seu nome para Wyman, em homenagem a um colega do exército que, segundo ele, era o melhor jogador de futebol que ele já tinha visto. “Isto mudou totalmente minha vida”, diz ele. “Eu me sentia auto-confiante, tinha orgulho do meu nome”.

Quando os Stones passaram alguns meses no sul da França para gravar Exile on Main Street, Wyman gostou do lugar e ficou morando. Sua casa era vizinha à do pintor Marc Chagall; os dois se tornaram amigos, e Wyman publicou um livro (Wyman shoots Chagall) com textos e fotos narrando a sua convivência. Ele é também autor de Rolling with the Stones, um gigantesco livro ilustrado sobre a história da banda, no modelo da Anthology dos Beatles. Meticuloso, Wyman manteve um diário detalhado da história da banda durante todo o tempo em que foi um Stone (ver em: http://www.billwyman.com/index.asp).

Hoje é dono de um restaurante em Londres (“Sticky Fingers”), toca numa banda chamada Rhythm Kings (o CD Just For a Thrill é bem divertido). Outro passatempo seu é a arqueologia amadora, e ele publicou um livro chamado Treasure Islands, sobre tesouros arqueológicos encontrados nas Ilhas Britânicas. Vai completar 70 anos em outubro próximo. Wyman é mais típico da geração do rock do que os outros Stones, que continuam fazendo discos, turnês, arrastando milhões de pessoas. Estes são a exceção. Os grandes roqueiros dos anos 1960 vivem hoje confortavelmente, dedicando-se à família e aos hobbies. Tocam, cantam e gravam quando lhes dá na telha. São os sobreviventes de um furacão, e transformaram o furacão numa escultura. Palmas para eles.