(Ursula Le Guin)
A leitura precoce dos contos de Machado de Assis me chamou desde cedo a atenção para a possibilidade de optar entre o presente e o passado narrativo. Poucos escritores alternam estes dois tempos com tal maestria e eficácia. A forma mais tradicional de narrar é contar os fatos no passado, como faz Machado em “O Diplomático”: “A preta entrou na sala de jantar, chegou-se à mesa rodeada de gente, e falou baixinho à senhora. Parece que lhe pedia alguma cousa urgente, porque a senhora levantou-se logo”. É o beabá narrativo: contar uma história “que já aconteceu”, mas de modo tão natural e vívido que dê ao leitor a impressão de que está acontecendo agora.
Bem diverso é o senso de imediatismo, de presença, que nos produz a narrativa no presente do indicativo, como faz o mestre em “Habilidoso”: “Paremos neste beco. Há aqui uma loja de trastes velhos, e duas dúzias de casas pequenas, formando tudo uma espécie de mundo insulado. Choveu de noite, e o sol ainda não acabou de secar a lama da rua, nem o par de calças que ali pende de uma janela, ensaboado de fresco”. Com poucas palavras, o leitor sente que “está lá”, dentro da história.
Os dois tempos podem se misturar lindamente, e mais uma vez recorro a Machado, agora em “O segredo de Augusta”: “São onze horas da manhã. D. Augusta Vasconcelos está reclinada sobre um sofá, com um livro na mão. Adelaide, sua filha, passa os dedos pelo teclado de um piano. – Papai já acordou? pergunta Adelaide à sua mãe. – Não, responde esta sem levantar os olhos do livro. / Adelaide levantou-se a foi ter com Augusta. – Mas é tão tarde, mamãe, disse ela. São onze horas. Papai dorme muito. / Augusta deixou cair o livro no regaço e disse olhando para Adelaide: -- É que naturalmente recolheu-se tarde.”
As primeiras linhas, ditas no presente, parecem um quadro, fotografia, cena estática; mas quando Adelaide se ergue e se desloca para junto da mãe, o narrador pula imediatamente para o passado narrativo, o qual é, por tradição, o modo “default” de contar histórias em nossa cultura. Transições deste tipo passam imperceptíveis pela mente do leitor, quando feitas com propriedade, e quando a opção pelo tempo narrativo é apenas uma questão de fluência estilística para o autor, e não pareça ter relevância para a história em si, para o entendimento do que está se passando.
A melhor defesa que conheço do passado narrativo foi feita por Ursula LeGuin. Diz ela que a narração no presente do indicativo “remove a história do fluxo do tempo”, limitando-o a um presente, sem passado e sem futuro. Já a narrativa no passado pressupõe dois polos: o tempo em que os fatos sucederam e o tempo em que estão sendo contados. E essa distância gera uma tensão: “a narrativa se situa no passado para que possa se permitir um movimento para diante”. Duas opções: fundir o tempo da história e o do leitor num só, ou distanciá-los, para que o tempo do leitor atraia para si o tempo da história.
A Ursula domina perfeitamente o tempo narrativo, os flashbacks, indas e vindas, inclusive ousando mesclar duas linhas temporais diferentes na mesma narrativa (como fez em Os Despossuídos). Por essas e outras razões ela é minha maior influência como escritora, não canso de ler e reler seus livros e fico com a permanente sensação de que tenho muito a aprender com ela.
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