Reza a lenda que Olavo Bilac, então nos píncaros da glória, esnobou Augusto dos Anjos, a quem sequer conhecia, quando circulou a notícia da morte do poeta paraibano. Ouvindo alguém lamentar o falecimento do autor do Eu, Bilac perguntou quem era ele. O interlocutor recitou-lhe um soneto de Augusto, e Bilac, dando de ombros, jogou sua pá-de-cal: “Se o que escrevia era isso, não se perdeu grande coisa”.
Parece difícil conceber dois poetas mais diferentes, mas ninguém é tão diferente que não-pegue-nem-uma-letra. Augusto era da geração pós-Bilac, e ávido leitor de poesia. Pelo menos um tema (e um tema íntimo, delicado) era comum aos dois: o tema da impotência da fala, da incapacidade de exprimir os pensamentos e sentimentos mais intensos.
Um dos poemas mais famosos do Rei dos Parnasianos é o soneto “Inania Verba”:
Ah! Quem há de exprimir, alma impotente e escrava
o que a boca não diz, o que a mão não escreve? (...)
O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava;
a Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
O jogo de polaridades e antíteses, um dos fortes de Bilac, poucas vezes foi tão belo quanto aqui.
E ele próprio talvez lesse com perplexidade mas com respeito versos como os de Augusto em “A Idéia”, a qual vem,
...tísica, tênue, mínima, raquítica;
quebra a força centrípeta que a amarra
mas de repente, e quase morta, esbarra
no mulambo da língua paralítica!
Bilac era um czar da expressão, um mestre consumado da arte de dizer. Imagino uma cena em que ele e Augusto pudessem ter se encontrado, não sei se num café elegante (mas Augusto não os freqüentava), ou talvez no terraço da casa de um amigo comum.
Num momento de descontração e cordialidade, talvez se pusessem a recitar. Bilac diria os versos de “Remorso”:
Choro, neste começo de velhice,
mártir da hipocrisia e da virtude,
por timidez o que sofrer não pude
e por pudor os versos que não disse!
Em Bilac, o travamento é moral e afetivo, é um travamento das emoções – o que condiz com o que se conta do poeta, ou que era um homossexual não-assumido, ou que amou sem esperanças, a vida inteira, a irmã de um amigo:
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?
Já o bloqueio de Augusto dos Anjos é um bloqueio conceitual, um bloqueio do intelecto, uma incapacidade de verbalizar visões que vão além das possibilidades da linguagem. O “Martírio do Artista” a lidar com a “arte ingrata”:
Para falar, puxa e repuxa a língua
e não lhe vem à boca uma palavra!
Para Augusto, a complexidade do mundo material está além da capacidade de expressão da linguagem individual e coletiva.
E este destino não é só do Homem. O próprio Universo material fracassa em sua auto-realização: é a “Natureza que parou chorando / no rudimentarismo do Desejo!” (“O Lamento das Coisas”), é a “sonoridade potencial dos seres / estrangulada dentro da matéria!” (“Monólogo de uma Sombra”).