Este filme minimalista, áspero e terno de Marcelo Gomes me atraiu em primeiro lugar pelo título, porque gosto de títulos com uma tríade de elementos aparentemente incompatíveis (Osso, Amor e Papagaios; Malagueta, Perus e Bacanaço, etc.). Tive a experiência (cada vez mais rara, num leitor compulsivo de jornais) de ir ver um filme sem saber nada sobre ele, e recebê-lo em pleno impacto “na caixa dos peitos”: o filme visto pelo que é, sem elogios ou ressalvas prévias. (Um efeito colateral negativo da crítica cinematográfica é esse entulhamento mental que promove. Cinéfilo lê dois ou três artigos antes de decidir-se a comprar o ingresso, e já não vai ver o filme pelo filme em si, mas para compará-lo com o que leu sobre ele).
Tiro o chapéu para a coragem do diretor, dos produtores e de todos os que apostaram na realização de um filme que transcorre o tempo todo nos cafundós dos grotões dos confins de um sertão onde Judas perdeu as meias, ou seja, bem pra lá de onde perdeu as botas. E um filme que, como o palácio do Rei dos Filisteus, repousa seu peso inteiro sobre apenas duas colunas: a parelha de ótimos atores que o carrega do começo ao fim. Os atores são contidos e intensos. Dos filmes que tenho visto, é um dos que sabem usar melhor o silêncio. As longas pausas ajudam a dar peso a diálogos que em si não são excepcionais (no sentido de que não são “literários”, não são “belas frases”), mas que tornam-se densos de significado por uma mera questão de ritmo e de timing.
Quando eu era estudante de cinema, meu colega Lincoln Cunha tinha uma expressão útil para definir certos filmes: “É um filme sobre uma dupla dialética”, dizia ele, referindo-se a uma dupla de personagens que estão o tempo inteiro em situações instáveis, com potencial dramatúrgico. Os exemplos da época eram filmes como Easy Rider e Midnight Cowboy. Eu acrescentaria filmes posteriores como Com o Passar do Tempo de Wim Wenders (aquele dos caras que viajam de caminhão consertando projetores 35mm em cinemas do interior) e este filme brasileiro em que dois sujeitos aparentemente incompatíveis vão reduzindo aos poucos as barreiras culturais e de classe que os separam. É, de certa forma, um faroeste americano, se entendermos esse gênero como “filmes sobre a camaradagem rude de dois homens que se enfrentam mas que conquistam o respeito um do outro ao longo desse enfrentamento”.
Não vou resumir o argumento do filme, porque se resumir não fica nada. Vi nos letreiros finais uma informação de que o roteiro se baseia num relato de “Ranulpho Gomes”, e suspeito que seja o pai do diretor. É uma dessas histórias que o pai da gente nos conta durante a infância (“Na época da Segunda Guerra me aconteceu uma coisa interessante...”). Com a repetição, a história, agüada pela imaginação de um filho, vai sendo depurada, filtrada, concentrada. “Um dia vou filmar essa história de meu pai”. Como um licor que passou 50 anos na prateleira.