quarta-feira, 11 de março de 2009

0878) “O Barco Ébrio” (8.1.2006)



Li o poema “Le Bateau Ivre” de Arthur Rimbaud aos dezenove anos, e ele continua a ser uma das experiências literárias mais intensas de que me recordo. Tive a sorte, também, de entrar neste grande poema pela mão do melhor dos guias, que visitou comigo cada estrofe, cada frase, cada deslumbrante imagem poética, apontando-a com o dedo, explicando-me seu ritmo, sua musicalidade, sua riqueza de associações visuais, sua fortuna de referências culturais no contexto da França e da Europa no século 19. Augusto Meyer é o nome do mestre, a quem tiro neste momento um chapéu metafórico, pelo muito que aprendi sobre a arte de ler a Grande Poesia ao me deparar, numa biblioteca de Belo Horizonte, com o singelo livrinho Le Bateau Ivre – Análise e Interpretação (Rio: Livraria São José, 1955). São 93 páginas onde o grande poeta traduz e disseca o grande poema: “Tema e Fontes”, “Linguagem”, “Versificação”, “Cromatismo”, “Tema e variações”, “Concordância Psicológica”.

Chamem-me antiquado, mas a minha birra com certas modas acadêmicas de que fui contemporâneo é o seu caráter extremamente redutor, sua mania de reduzir a literatura a um conjunto de cálculos, percentagens: “Este poema usa 23% mais consoantes fricativas do que o restante da obra do poeta. Portanto, bibibi, bobobó...” Excesso de análise faz perder a perspectiva, amigos. Já falei aqui: analisar literatura a este nível de detalhe é perder a literatura de vista, é querer discutir um quadro de Van Gogh a partir da composição química das tintas que ele usou. O significado de um texto não está aí: está um nível mais acima.

Não é o caso de Augusto Meyer, que analisa as sonoridades de Rimbaud, o vocabulário de Rimbaud, suas sutilezas métricas – e as ocasionais heresias que o poeta de 19 anos cometia com a cara-de-pau dos jovens de talento. Analisa a riqueza de referências culturais que Rimbaud, ainda tão jovem, conseguia extrair das fontes literárias clássicas (na adolescência foi ótimo aluno de latim e grego) e das revistas ilustradas da época, o equivalente do século 19 a revistas como a atual National Geographic, e cujas gravuras e reportagens deixaram ecos indiretos na “imageria” do poema.

“O Barco Ébrio” tem um conteúdo ominosamente profético: é a história de um barco que, largado à deriva num rio, perde-se pelos oceanos afora, passa por tempestades e visões, e no fim atraca melancolicamente, cansado, desiludido, desejando para si apenas “uma poça escura e fria, onde um menino, em tarde perfumosa, solta, agachado e triste, um batel à ventura, frágil, qual borboleta...” Rimbaud escreveu febrilmente até os 19 anos, passou por crises que quase lhe tiraram a vida e a sanidade mental; queimou seus papéis, fugiu para a África, virou traficante de armas e morreu de gangrena ainda jovem. Existem hoje dezenas de maciças biografias que contam sua vida nos menores detalhes. Nenhuma diz tanto sobre ele quanto estas vinte e cinco estrofes de quatro linhas.

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