sábado, 17 de janeiro de 2009

0760) O teste de Turing do sexo (25.8.2005)



(Alan Turing)

Alan Turing foi um matemático britânico que teve um papel crucial na II Guerra, decifrando códigos alemães. Em qualquer guerra, uma das principais atividades é a de interceptar mensagens inimigas, decodificá-las e usar as informações assim obtidas (posição de tropas, local e data de prováveis ataques, etc.). O grupo de que Turing fazia parte, instalado num local chamado Bletchley Park, fez milagres. Uma parte dessa história está contada num ótimo filme (e livro) inglês chamado “Enigma”. 

Entre muitas contribuições fundamentais à teoria da informática, Turing foi o autor de um experimento teórico para decidir se computadores podem ou não pensar igual a um ser humano (v. “O teste de Turing da arte”, 4.6.2004). Ele propôs que um computador e um homem fossem colocados em salas separadas, e pessoas “de fora” fariam perguntas a ambos, por escrito (num teclado), sendo que o homem se faria passar por um computador. Se as pessoas de fora não soubessem distinguir, lendo as respostas, quem era quem, isto seria uma prova de que um computador pode pensar igual a um ser humano. (O teste é muito mais complexo do que este resumo; quem quiser saber mais, vá aqui: http://cogsci.ucsd.edu/~asaygin/tt/ttest.html). 

Turing teve a idéia baseado num jogo de salão inglês, “The Imitation Game”, em que um homem e uma mulher iam para um quarto, e as pessoas faziam perguntas por escrito para saber se quem estava respondendo era o homem ou a mulher – sendo que ambos deveriam fingir ser a mulher. 

Recentemente, alunos de uma universidade em Massachusetts puseram em prática uma variante do Teste de Turing. Freqüentadores de um saite foram convidados a fazer perguntas a um homem e uma mulher, ambos fingindo ser a mulher. E depois, noutra rodada, quem respondia eram uma mulher e o computador chamado ALICE, uma máquina projetada para conversar e responder perguntas. 

Cada perguntador tinha cinco minutos e podia perguntar o que quisesse: Você usa batom? Você usa saia? De que tamanho é seu cabelo? E assim por diante. Depois de três horas, entre 42 pessoas 23 jamais suspeitaram que ALICE não fosse uma mulher e sim uma máquina. (Eles não sabiam que havia um computador na jogada.) 

Ao que parece, a única pergunta que deixou os homens e ALICE numa “saia justa” (valha o termo!) foi: “Qual o número de meia-calça que você usa?” Todos responderam S (small), M (medium) ou L (large) – nenhum deles sabia que no caso os tamanhos são A, B, C e Q. As respostas erradas a esta pergunta botaram tudo abaixo. 

O teste, inspirado no fingimento de papéis sexuais, tem una ironia amarga pelo fato de Alan Turing ter sido homossexual, o que na Inglaterra da época era considerado uma aberração. Foi parar na cadeia em 1952, depois foi obrigado a fazer um tratamento hormonal “para virar homem”, e suicidou-se em 1954. Foi um dos homens mais inteligentes do século, morreu aos 42 anos e até hoje não há um teste que meça a estupidez de quem o matou.







0759) O Paradoxo de Zenão (24.8.2005)



Jorge Luís Borges diz que seu pai usou um tabuleiro de xadrez para ensinar-lhe “este pedacinho de escuridão grega”. Eu o conheci por volta dos doze anos, no excelente livro Nós e a Natureza – O Romance da Física de Paul Karlson, cuja reedição recomendo à Editora Globo. Zenão de Eléia (às vezes chamado “Zenon”, de onde veio o nome daquele grande armador do Guarani de Campinas e do Corinthians), que viveu no quinto século antes de Cristo, era um especialista em “botar terra” nas idéias aparentemente óbvias dos outros. Quem quiser conhecer melhor suas idéias pode olhar em: http://www.iep.utm.edu/z/zenoelea.htm.

Na verdade, Zenão propôs uma série de paradoxos, o mais famoso dos quais é conhecido como “Aquiles e a tartaruga”. Suponhamos que Aquiles decide apostar carreira com uma tartaruga numa pista de um quilômetro, e dá a ela uma pequena vantagem de cem metros. Aquiles está no ponto zero, a tartaruga no ponto 100. Ao sinal, os dois partem. Quando Aquiles cruza os primeiros cem metros, a tartaruga andou (digamos) dez. Aquiles transpõe estes dez, mas não a alcança porque no mesmo intervalo ela andou mais um metro. Quando ele transpõe este metro, ela andou dez centímetros. Ele transpõe os dez centímetros, mas aí ela andou mais um centímetro. Ele transpõe este centímetro, mas aí ela andou dez milímetros. Ele cruza esta distância, mas a tartaruga andou um milímetro a mais. Quando ele atravessa esse milímetro, a tartaruga andou um décimo de milímetro. E assim por diante. Aquiles jamais alcançará a tartaruga.

Este parábola finge provar que, se considerarmos que o Espaço e o Tempo são infinitamente divisíveis em unidades cada vez menores, precisaremos de um Tempo infinito para transpor qualquer distância de Espaço. É claro que a função de uma historieta assim é apenas ilustrar uma questão puramente matemática, porque salta aos olhos de qualquer pessoa que se você botar uma tartaruga para disputar uma corrida com um sujeito, mesmo com cem metros de vantagem, ele a ultrapassará sem problema algum. Não precisa nem ser Aquiles; pode ser até Jô Soares.

Releia o segundo parágrafo, camarada. “Aquiles” e “Tartaruga” são engodos, para dar a impressão de que basta um deles ser mais rápido do que o outro. E bastaria, se a velocidade de ambos fosse constante. O que importa a Zenão é que depois de cada etapa transposta, a velocidade dos dois na etapa seguinte diminui proporcionalmente, e a distância entre os dois continua proporcionalmente a mesma. Daí a pouco estaremos dizendo que enquanto “Aquiles” transpõe um milésimo de milímetro a “tartaruga” já avançou um décimo-de-milésimo de milímetro, e assim por diante. A esta altura, ambos estão em ultra-super-câmara-lenta. O Paradoxo de Zenão não tem relação com o movimento real dos corpos. O que ele demonstra é nossa possibilidade de inventar um número infinito de obstáculos (ou de etapas a serem percorridas) para que uma tarefa mental seja cumprida.

0758) Eu era feliz e não sabia (23.8.2005)




Quando eu era pequeno, Ataulfo Alves era um dos compositores mais conhecidos no país, algo como Martinho da Vila hoje em dia. Suas músicas tocavam o tempo todo, todo mundo queria gravá-las. 

Uma das mais conhecidas é a canção nostálgica em que ele relembra sua cidade natal, Miraí (MG), com versos simples e emotivos: “Eu daria tudo que tivesse pra voltar ao tempo de criança... Eu não sei por quê que a gente cresce, se não sai da mente essa lembrança”. 

Ele recorda o ambiente da cidadezinha, as pessoas que sumiram no tempo: “Que saudade da professorinha que me ensinou o b-a-ba... Onde andará Mariazinha? Meu primeiro amor, onde andará?” E termina: “Eu igual a toda meninada, tanta travessura que eu fazia! Jogo de botão sobre a calçada... Eu era feliz e não sabia!”

Este verso final incorporou-se à nossa linguagem cotidiana, virou uma parte do falar brasileiro, e não sei de honra maior para um verso escrito por um indivíduo. Dizemos isto a propósito de tudo, a propósito de qualquer situação passada que na hora não parecia grande coisa mas que, quando a vemos em retrospecto, a gente sente uma falta danada. 

Certa vez, quando participei da criação de motes para o Congresso de Violeiros de Campina Grande, propus o mote: “A gente só é feliz / quando não sabe que é”. Era no tempo em que o Congresso lotava o Ginásio da AABB com milhares de estudantes. Éramos felizes, e não sabíamos.

Ataulfo parece sugerir que existe um certo conflito entre a felicidade e a consciência desta felicidade. Quando estamos totalmente absorvidos por êxtases ou epifanias, não sobra muito tempo para botarmos as mãos nos bolsos e pensarmos, “puxa vida, que momento legal este!” 

Parece sugerir também que esse tipo de felicidade só existe na infância, naquele momento em que já somos grandes o bastante para fruir com intensidade as coisas boas da vida (Mariazinha, o jogo de botão, etc.), mas não sabemos ainda das desilusões e dos sofrimentos que nos aguardam mais adiante.

Basta pegarmos a máquina-do-tempo, no entanto, para percebermos que não é bem assim. Lá está Ataulfinho, de calção, sentado na calçada, jogando botão em cima de uma tábua e vendo Mariazinha pular corda ali perto: a saia subindo e descendo... 

Esta é a imagem que lhe ficará na memória meio século depois, mas ao retornar àquele instante específico ele sente virem à tona uma horda de coisas ruins que já esquecera. A prova de Geografia amanhã, para a qual não estudou nada. A ameaça feita por Zezim da esquina de dar-lhe uns cascudos por causa de uma guerra aérea de corujas. O pai, que vive adoentado, gemendo, recusando-se a tomar remédio e dizendo que “não é nada”. Os dez tostões a mais que pegou do troco da bodega e que a mãe anda procurando em altas vozes por dentro de casa. 

Felicidade? Claro. A felicidade é a memória passada a limpo, expurgada dos “quatrocentos golpes” que nos ferem e nos magoam a cada dia. Só se é feliz hoje muito tempo depois.