sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

0713) The Corporation (1.7.2005)




O filme canadense The Corporation já entrou por antecipação na minha lista dos Melhores de 2005. É um documentário político ao estilo dos de Michael Moore (que aliás é um dos entrevistados), sem nada de mais em termos de narrativa, parecendo um daqueles especiais da TV a cabo; e é longo (145 minutos). 

Por que um dos “melhores”, então? Pelo simples fato de que as idéias que discute são tão importantes para o mundo e a humanidade que pouco me importam essas besteiras de estilo ou narrativa. Quando você está com uma doença grave e o médico lhe passa um remédio, você não fica discutindo a caligrafia dele.

The Corporation discute o papel que as megacorporações capitalistas desempenham no mundo de hoje. 

Poluição desenfreada e impune do meio-ambiente. Perseguição e chantagem contra a imprensa. Exploração desumana da mão-de-obra dos países pobres. Propaganda enganosa para disfarçar produtos nocivos à saúde do consumidor. Hoje, estas corporações estão patenteando microrganismos e seqüências de genoma, e os usarão no futuro com a mesma sem-cerimônia com que hoje usam cancerígenos. 

Alguns episódios são mostrados em detalhe, como o apoio logístico da IBM aos campos de extermínio nazistas e a guerra dos bolivianos para impedir que a água do país fosse privatizada (era proibido até mesmo juntar água da chuva).

O ponto de partida do filme é algo tão absurdo que parece coisa de Woody Allen. Na década de 1880, a Suprema Corte dos EUA promulgou (através da 14a. emenda) uma série de direitos individuais que visavam favorecer os ex-escravos libertos. Com uma filigrana jurídica, advogados das corporações fizeram a Corte considerá-las “pessoas” jurídicas, e garantir a elas os direitos concedidos aos ex-escravos. Ou seja: elas estavam livres para fazer o que bem entendessem, porque eram “pessoas”. 

É o mesmo que soltar um tubarão na piscina do Sesc. Entre 1890 e 1910 esta lei foi invocada 307 vezes: 19 por ex-escravos, 288 por corporações.

Daí, o filme faz a pergunta: Que tipo de pessoa é esta? E faz um diagnóstico passo-a-passo provando que, se fosse uma pessoa, a Corporação seria um perigoso psicopata. Visando apenas os próprios objetivos. Sem se preocupar com a segurança ou a vida alheia. Sem experimentar sentimentos de medo, culpa ou remorso. Sem reconhecer responsabilidades para com ninguém ali de si própria. 

O problema de tratar as corporações como pessoas, diz o filme, é que elas não têm nem corpo nem alma, não podem ser condenadas nem ao inferno nem à cadeia.

As corporações podem ser dirigidas por bons indivíduos, como reconhece Noam Chomsky, um dos entrevistados. O problema é que elas têm (como a própria Lei estabelece e de certo modo obriga) a finalidade de produzir lucros, e passam por cima de quaisquer outras considerações. E os que nelas trabalham acabam se safando com o velho argumento (quem nunca o usou, camaradas, atire a primeira pedra): “Eu estava apenas fazendo meu trabalho”.






0712) Livro dos Homens (30.6.2005)



Livro dos Homens de Ronaldo Correia de Brito (Cosac Naify, 2005) prolonga o livro anterior do autor pela mesma editora, Faca. São duas coletâneas homogêneas que podem ser vistas como um só livro, até pelo fato de que o segundo conto de um (“Faca”) tem sua história retomada no primeiro conto do outro (“O que veio de longe”). São contos que se passam no Nordeste, tanto no sertão das grandes casas senhoriais das fazendas de gado quanto nas pequenas vilas; há histórias ambientadas no século 19, e outras que são contemporâneas do rádio e do cinema.

Os contos destes livros trazem de volta a velha questão sobre a diferença entre literatura regional e literatura universal. Não é questão que se resolva numa lauda, e não tentarei. Quero apenas apontar alguns sintomas. A literatura regional tem sempre um impulso documental, etnográfico. Pretende ser um registro de formas típicas de viver, de usar, de falar. Autores regionalistas se esmeram em reproduzir sotaques, palavreado, usos e costumes; descrevem detalhes típicos de mobiliário, vestimenta, alimentação, transporte; recenseiam flora e fauna; registram didaticamente as atividades dos “ciclos econômicos” (cana-de-açúcar, cacau, café, gado, pescaria, etc.); preservam para os séculos futuros a memória de ritos religiosos, festas, eventos coletivos de trabalho e de lazer. Existe por trás disto um sentimento (que considero necessário) de preservação da memória de um modo de vida, e muitas vezes é esta faceta que prolonga a existência de obras cuja estatura literária não é grande coisa. (Paciência, beletristas – nem só de arte literária é feita a cultura de um povo)

O Nordeste dos contos de Ronaldo Brito é um Nordeste despojado dessa exuberância de cenografias e figurinos: seco e áspero, em preto-e-branco, reduzido ao osso e à medula das tragédias humanas. Lembramos que é Nordeste por causa dos nomes próprios e do surgimento eventual de um candeeiro, um carro-de-boi, uma festa popular. Mas tudo isto passa rápido, e nunca em primeiro plano. É o sertão do Ceará, mas poderia ser a Armênia, o México, a Grécia dos filmes de Cacoyannis, a Espanha de Buñuel ou a Rússia de Tarkovski.

Penso que o perigo do “regionalismo” é tender ao epidérmico, ao descritivo, ao superficial; e que por outro lado o perigo do “universalismo” é tender ao mediano, ao repetitivo, ao que-se-encaixa-em-todo-mundo. Estes dois extremos são evitados nos contos de Ronaldo Brito, principalmente por uma grande economia verbal onde cada frase parece um corte cinematográfico mostrando-nos apenas fragmentos de uma ação cujo restante tem que ser deduzido ou imaginado. Quem quer ver ali o Nordeste o encontra, porque ele está todo ali, impregnado em cada corte histórico ou social. Mas um leitor húngaro, texano ou palestino irá encontrar ali situações humanas que parecem ao mesmo tempo remotas e familiares, como quando um episódio da Bíblia ocorre dentro da nossa própria casa.

0711) Paula, traz a cerveja! (29.6.2005)


(as flores de Monet)

De passagem pela Paraíba, ouvi no rádio uma divertida chamada sobre o Campeonato Brasileiro. O locutor anuncia: “Campeonato Brasileiro, 8 meses de emoção. Em 8 meses, muita coisa pode acontecer”. Efeito sonoro. Voz de um cara: “Paulinha, me traz a cerveja, o jogo já vai começar!”. Efeito sonoro. Mesma voz: “Paula! Cadê a cerveja? O jogo já começou!” Efeito sonoro. Mesma voz: “Oi mãe... vim ver o jogo aqui. Tem cerveja?” Volta o locutor: “Em 8 meses, muita coisa pode acontecer”.

Uma propaganda da Tigre, na TV, mostra um céu estrelado. Voz de homem: “Que céu lindo”. Voz de mulher: “É mesmo”. Uma estrela cadente desliza pelo céu. Voz do homem: “Veja, meu amor! Uma estrela cadente! Faz um pedido!” Voz da mulher: “Já fiz. Pedi pra gente poder comprar um telhado, antes que chova”.

Em sua simplicidade, estes textozinhos dão aulas de economia narrativa, e mostram como contar uma história com um mínimo de efeitos. Discute-se muito na literatura o predomínio da História ou do Estilo. Para alguns, a literatura deve se concentrar em inventar histórias interessantes e contá-las com eficácia. Para outros, a história pode ser qualquer uma, o que importa é o estilo pessoal do autor. É como na pintura: quando Monet pinta uma flor aquática, o importante não é a flor que mostra, mas o modo como ele pinta a flor.

História e Estilo são a perna direita e a perna esquerda. Pode-se até andar sem uma delas, mas com as duas vai-se mais longe, e melhor. Os exemplos que citei acima vêm da publicidade, onde é às vezes o cara tem apenas vinte ou trinta segundos para criar uma situação e um desfecho. A melhor maneira de contar histórias assim é através da elipse: em vez de contar tudo, conta-se apenas uma pequena parte, confiando que o público saberá interpretar corretamente os sinais e preencher os espaços vazios. No caso da primeira história, por exemplo, não é preciso dizer que Paula é a esposa do sujeito. Poderia ser a irmã mais nova, por exemplo; mas algo me diz que em 99% dos casos o cara que pede uma cerveja pra ver futebol pede à mulher, não à irmã.

Em ambas as histórias não sabemos quem são essas pessoas. Para que? Basta entendermos, após as primeiras frases, que são marido e mulher. O aprofundamento da descrição social e psicológica dos personagens é uma grande conquista da literatura dos últimos séculos. Mas não é, em hipótese alguma, um requisito indispensável para se contar uma história. É o mesmo caso das piadas. Um sujeito entrou no bar e pediu uma cerveja... Num avião havia um alemão, um judeu e um brasileiro... Dois náufragos estavam numa ilha deserta... Quem são essas pessoas? Não importa. São funções narrativas, e deles diz-se apenas o que é relevante (sua nacionalidade, no segundo exemplo). A Arte de Contar Histórias é um mecanismo com milhares de anos. Seu emprego na Arte da Literatura não deve fazer a gente pensar que as duas são a mesma coisa, nem que são antagônicas.

0710) O império da lambada (28.6.2005)


(Flávio José)

Estive em Campina Grande na abertura do São João, cheio de expectativa: ia haver um show de Flávio José, e eu até hoje nunca assisti um show ao vivo do grande forrozeiro. Nossas presenças no São João nunca coincidem: “quando eu ia ele voltava, quando eu voltava ele ia”. Cheguei ao Parque, desci, cruzei a pirâmide, mas quem disse que consegui chegar lá? Estava “duro de gente”, e nem consegui chegar perto da “catedral”, quanto mais do palco. Não me preocupei; fiquei tomando uma cerveja e ouvindo de longe. Mais do que o prazer de ver o show, experimentei o prazer de ver um São João como deveria ser – e muitas vezes não é.

Deixem-me repisar a mesma tecla que repiso aqui todo ano. Não gosto da música de bandas como Mastruz Com Leite, Calcinha Preta, Asa de Águia, Limão Com Mel e outras do mesmo naipe. É um tipo de lambada padronizada e repetitiva, boa de dançar, mas sem substância. Não peço a extinção dessa música; eles que se divirtam em paz, no canto deles. O que questiono é a presença dessas bandas (que já vem há anos, sistematicamente) no São João de Campina. Não têm nada a ver com forró, com São João. É o mesmo caso dos shows de música sertaneja paulista ou goiana. Anos atrás, a véspera do São João teve como atração principal um show de Zezé de Camargo e Luciano. É tão absurdo quanto fazer um baile de Carnaval e contratar os Rolling Stones, sob o pretexto de que são a maior banda do mundo.

Existe mercado e público, sim, para a música nordestina. Alguns dos shows com maior público que já vi no Parque do Povo foram shows dos Três do Nordeste, de Elino Julião, de Maciel Melo, de Marinês. A música nordestina trava uma batalha desigual em três frentes, contra três concorrentes: 1) a axé-music baiana e derivados; 2) a música sertaneja das duplas paulistas, mineiras e goianas; 3) o forró-lambada das bandas nordestinas que seguem o modelo avestruz-com-leite. É uma luta desigual porque cada um desses três adversários é na verdade uma “frente” com dezenas de cantores e grupos, tendo na retaguarda um impressionante exército de estações de rádio, patrocinadores de peso, e influência política. A música nordestina, de um modo geral, não tem estas armas. (Eu até dispensaria a influência política, que nunca traz boa coisa)

Recentemente, foi realizada no centro do Recife uma manifestação com dezenas de sanfoneiros, protestando contra a invasão do São João de Caruaru, onde (cito “O Globo”) “o que se viam no palco principal eram bandas totalmente descaracterizadas, com dançarinas seminuas”. Já vi essa mesma presepada no Parque do Povo. Mais uma vez – não tenho nada contra dançarinas seminuas, mas sou contra chamar a isto de forró ou trazê-las para uma festa junina. No show business, contudo, a gente sabe que é o dinheiro quem fala-no-centro. Campina e Caruaru, as cidades que mais defenderam o São João do Nordeste, não deveriam passar por essa vergonha diante do Brasil inteiro.