(o manuscrito das "Voyelles" de Rimbaud)
As vogais e as consoantes! Será possível que sejamos tão cegos, tão desfocados, que não percebamos o Segredo transcendental que nos revelam? Rimbaud dedicou um soneto de alquímica simbologia às vogais, mas ainda nos faz falta um poeta de maior fôlego (valha o termo!) que faça o mesmo com as consoantes. Porque juntas estas duas entidades sonoras explicam, como metáforas corporais, lingüísticas, o funcionamento de nossa mente.
Você consegue conceber, caro leitor, uma língua composta apenas de vogais, ou apenas de consoantes? Impossível. Tão inconcebível quando o disco-de-um-lado-só imaginado por Borges, o objeto que existe de um lado mas não existe do outro (não me refiro a “ser invisível”, e sim a não existir mesmo). Podemos fazer brincadeiras, como Ítalo Calvino ao batizar o narrador de suas Cosmicômicas como Qfwfq, ou como a saudação jovial dos surfistas cariocas: “Ó o auê aí, ó!” Mas nunca iremos muito além disso.
A vogal é a Emoção, a consoante é a Razão. Sem uma das duas, ninguém diz nada, ninguém articula ou se expressa, ninguém existe. A vogal é a projeção do ar que temos nos pulmões, é o nosso gesto instintivo de botar para fora algo que temos no peito, e de fazê-lo ruidosamente, despertando a atenção de quem está próximo. E as consoantes são obstáculos que colocamos em torno desses sons, moldando-os, dando-lhes forma, modulando-os, fazendo com eles o que a mão do oleiro faz com a argila mole.
A Emoção cria e a Razão formata. As vogais são o ar em expansão que a razão transforma em ar comprimido, contendo-o, retendo-o, acumulando sua força e dirigindo sua explosão. Por isto que a voz é um instrumento musical: porque se baseia no mesmo princípio. Como a sanfona, em que o ar produzido pelo fole (as vogais) é formatado em notas pelas palhetas e teclas (as consoantes). Como o violão, em que a vibração da corda percutida pela mão direita (a vogal) é retida e modificada pela mão esquerda (a consoante).
Estou exagerando? Acho que sim, pois nem tudo é absoluto de um lado ou do outro. Na própria enunciação de cada vogal básica (á, é, í, ó, ú) já existem diferenças de modulação, ou seja, cada uma já tem algo de “consoante” a modificá-la. E no próprio jogo de consoantes existe uma emissão sonora autônoma: aí estão o zumbido do M, o ciciar do S... Aí está a sutil diferença entre sonoras e surdas que nos permite distinguir o J do X, o D do T, o B do P...
Antes que o meu argumento se estilhace num excesso de exceções e de sutilezas, melhor encerrar a metáfora, melhor carimbar e rubricar aqui o postulado teórico. Quem é que cria – a emoção, ou a razão? Resposta: as duas. Sem a emoção, a razão não passa de um aglomerado de regras e restrições, que não têm o que formatar. Sem a razão, a emoção não passa de ar derramado no ar. Cada vez que falamos, exercemos nossas duas liberdades: a de emitir sons e a de modificá-los, a de controlar nossa expansão através da nossa disciplina.
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