segunda-feira, 30 de novembro de 2009

1388) Puxa o rabo do tatu (25.8.2007)




Comprei num sebo uma edição de bolso de um dos livros mais fascinantes que já li, O Teatro do Absurdo, de Martin Esslin, que foi meu livro de cabeceira por volta de 1971, quando eu era um estudante de cinema que flertava à distância com o teatro. O livro de Esslin descreve e comenta a obra dos grandes dramaturgos do absurdo: Ionesco, Beckett, Genet e Adamov. Mais interessante, contudo, é o capítulo “A Tradição do Absurdo”, onde Esslin aponta com perspicácia a existência de um absurdo não-literário presente em todas as culturas, especialmente nas cantigas folclóricas e nas parlendas infantis.

Esse absurdo verbal é mais visível nos livros de autores como Lewis Carroll ou Edward Lear, nos “limericks” irlandeses; mas sua origem são as cantigas infantis, ou “nursery rhymes” dos países de língua inglesa, uma fonte que nem sempre a crítica parece levar a sério. Nossas cantigas e parlendas infantis também estão cheias disso. Lembram-se dos sistemas de escolha para brincadeira de toca, de se-esconder, e outras? A pessoa que tira vai recitando frases e a cada sílaba toca numa pessoa ao longo de um círculo: “Fui-na-ma-ta-cor-tar-le-nha / San-tan-tônio-me-cha-mou / quand-do-san-to-cha-ma-gen-te / é-si-nal-de-pe-ca-dor... / Pu-xo-ra-bo-do-ta-tu, quem-tá-fo-ré-tu!” Sempre achei essa quadrinha uma coisa ominosa, ameaçadora, esse santo na floresta chamando o pecador para levá-lo... pro Céu? Tem uma que é puro mistério de Agatha Christie: “Lá em cima do piano, tem um copo de veneno, quem bebeu morreu... Puxa o rabo do tatu, quem tá fora é tu”.

Uma das malícias desse sistema de escolha era quando a gente dava uma suingada no ritmo e fazia com que o gesto não coincidisse com a voz: recitava no mesmo ritmo, mas o toque da mão adiantava ou atrasava de acordo com nossa conveniência, para que o “tu” colocasse de fora alguém que a gente escolhesse.

As frases não precisam fazer sentido. Havia uma cantiga de roda que terminava com todo mundo gritando: “A bença, vovó! Ficou no caritó!” Eu não era tão pequeno que não pensasse: “Oi, se ficou no caritó, não casou. Se não casou, como pode ser avó de alguém?” Essas cantigas infantis são o melhor exemplo do “nonsense”, o não-senso, o que não quer nem precisa fazer sentido. Resíduos de versos, de frases cotidianas, fragmentos de histórias, onomatopéias, coisas que nada querem dizer: querem apenas ser, apenas soar.

O universo dessas cantigas explica em parte a atração que as letras que-não-dizem-nada exercem sobre o público, o que pode ser aferido vendo-se o sucesso de marchinhas de carnaval, canções da axé music, e mesmo muita coisa da MPB. Não estou com isto recusando o sentido, mas não se deve esperar que toda letra de música seja tão cartesiana quanto as de Chico Buarque ou de Renato Russo, compositores sempre preocupados com o “conteúdo”. Há uma área da canção que nasce como brinquedo sonoro, brota como brinquedo, e como brinquedo tem que ser considerada.

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