quinta-feira, 19 de novembro de 2009

1378) O sertão e o mar (14.8.2007)




(Icapuí, Ceará)

Podemos dividir a intelectualidade brasileira em dois grandes partidos: os que preferem Machado de Assis e os que preferem José de Alencar.

Notem que o sujeito não precisa desgostar do outro autor, ele apenas prefere um, identifica-se com o mundo dele, a mentalidade dele.

Glauber Rocha, em sua fase terminal, foi um alencarista ferrenho. Sentava o malho no pobre do Machado naqueles seus artigos cheios de K, Y e Z.

Outro alencarista era Sílvio Romero – na verdade, este era menos um caso de alencarista do que de anti-machadista. Romero chamava as obras de Machado de “comédias de almanaque”, criticava seu pessimismo que só servia para iludir alguns simplórios que achavam aquilo uma maravilha.

Quem equacionou essa questão de maneira mais algébrica foi Ariano Suassuna em As Infâncias de Quaderna. No Folheto 63, “Os Cortiços da Cidade e os Guerreiros do Sertão”, ele diz, através do personagem Samuel (o defensor da cultura ibérica), que desde a vinda da Coroa portuguesa o Brasil se dividiu:

“De um lado, os urbanistas cosmopolitas e ocidentalistas, os quais, sob o chamado espírito de civilização, pretendem aproximar o Brasil das elites européias; do lado oposto, os sertanistas, que sob o espírito da conquista, pretendem – a meu ver erradamente – realizar o nacionalismo através de uma fusão grosseira da épica com um certo tradicional-populismo que no nosso caso tem sido o escárnio da Nação e da Tradição!” 

E Samuel conclui indicando os autores-símbolo das duas correntes: Machado e Euclides da Cunha.

A descrição de Ariano é feita através do seu adversário ideológico, porque todo mundo sabe que entre Euclides e Machado o autor da Pedra do Reino escolherá sempre Euclides.

O importante, contudo é essa divisão teórica entre os Urbanistas (que incluem de Machado até Rubem Fonseca) e os Sertanistas (de Alencar até Graciliano, Zé Lins, Rachel de Queiroz, etc.). Essas duas correntes exprimem, por exemplo, as duas colonizações do Nordeste: a que foi feita pelo litoral em nome dos governos, e a que foi feita pelo interior, subindo o Rio São Francisco, em nome dos desbravadores anônimos.

O Brasil tem essas duas camadas, sendo que hoje em dia a camada Urbanista, civilizatória, se sobrepõe (em termos de poder político e econômico, e em termos de visibilidade) à camada Sertanista.

Hoje, dois terços de nossa população vivem nas cidades. Mas grande parte desses dois terços migraram do “sertão” (tomado aqui em seu sentido mais amplo e simbólico). A civilização urbana parece ser nosso destino evolutivo, ou pelo menos é nesse rumo que o mundo tem se encaminhado até agora. Mas quando esse mundo Urbanista entra em crise, fica sem valores e à deriva, ou sente-se à falta de um tutano, de uma medula, é no “sertão” que vai procurá-los.

A Cidade é a nossa face pública, racionalista. O Sertão é o nosso Inconsciente profundo, de onde nascem nossas emoções e onde pulsa “a única vida que vale a pena ser vivida”, como dizia Stefan Wul em Pré-História do Futuro.








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