terça-feira, 27 de outubro de 2009

1333) A fábula e a anedota (21.6.2007)


(Malba Tahan)

Um corvo estava pousado num galho, com um pedaço de queijo no bico. Uma raposa faminta parou embaixo e ficou de olho no queijo. Aí disse em voz alta: “Ouvi dizer que os corvos têm uma voz tão melodiosa! Como tenho vontade de ouvir o canto mavioso de uma dessas aves!” Envaidecido, o corvo abriu o bico e começou a crocitar. O queijo caiu, a raposa o abocanhou e foi-se embora, muito satisfeita. Moral da história: um vaidoso é sempre uma presa fácil para um adulador.

Um guarda-noturno viu um bêbado agachado junto de um poste de iluminação, procurando algo. Foi perguntar o que havia, e o bêbado disse: “Estou procurando minha chave, que caiu quando eu estava abrindo a porta”, e apontou para uma casa a certa distância. O guarda ponderou: “OK, mas se a chave caiu lá, por que você veio procurar aqui?” “Ora,” disse o bêbado, “vim procurar onde está mais claro, porque naquele escuro de lá eu não vou achar nunca.”

Tenho certeza de que o leitor entendeu ambas as historietas, e percebeu também a principal diferença entre elas, e que para mim é uma das diferenças cruciais entre a Fábula e a Anedota. A diferença é que a Fábula (no modelo clássico de Esopo, La Fontaine, etc.) se conclui com uma “moral da história”, um pequeno aforismo que sintetiza e explica o significado da historieta; e a anedota não. Poderíamos concluir a anedota do bêbado e do guarda dizendo algo como: “Moral da história: Diante de um problema, certos indivíduos preferem procurar respostas onde lhes é mais cômodo procurar, e não onde a resposta provavelmente está” – algo assim. Mas não. A anedota, mesmo quando tem um fundo filosófico (e esta me parece exemplar, digna de figurar em qualquer tratado metafísico) deixa as conclusões a nosso cargo.

Comparei certa vez os contos de Malba Tahan aos contos de Kafka, e observei que uma diferença entre os dois é que Malba Tahan sempre conclui suas historietas árabes com uma “moral da história”, o que muitas vezes as enfraquece literariamente; e Kafka, sabiamente, nunca explicou suas historietas, que são meio absurdas, meio vagas, meio grotescas, e pelo fato de não se fecharem num significado imposto acabam funcionando como geradores permanentes de significados múltiplos, de acordo com nosso estado mental durante a leitura.

Borges dizia de Nathaniel Hawthorne o mesmo que digo de Malba Tahan – que sua preocupação didática e moralizante empobrecia as interessantes fábulas que contava, as quais seriam mais ricamente interpretadas sem essa “interpretação final” que ele se achava na obrigação moral de acrescentar. Parábolas em-aberto, como os “koan” dos monges budistas funcionam melhor para mentes já preparadas, mais aptas a destrinchar significados. Talvez fosse interessante ver se as anedotas ganhariam ou perderiam se fossem concluídas com essas pequeninas explicações. Poderiam ajudar este ou aquele ouvinte, mas a verdade é que a anedota, inclusive a de fundo filosófico, sobreviveu sem isso até hoje.

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