quinta-feira, 22 de outubro de 2009

1307) O moído de Romário (22.5.2007)



“Acabou-se o moído de Romário / e o Gol Mil tá rodando na TV...” Pois é, amigos, em matéria de moído o futebol brasileiro há muito tempo não acompanhava uma novela tão comprida. Domingo passado, um juiz misericordioso apitou um pênalte, entregou metaforicamente a bola a Romário, e disse: “Vamos, cidadão, porque o País está parado há mais de um mês esperando essa bola entrar”. Estou exagerando, claro, mas tudo que cerca o Maior Baixinho do Mundo conduz à metáfora, à hipérbole, à prosopopéia. A bola, entrou, isso é o que conta. (Pelo meu gosto teria sido no Náutico, mas é pedir demais aos Deuses do Futebol).

Os mil gols de Romário reacenderam uma discussão curiosa, a das estatísticas que cercam o futebol. Uma das coisas mais fascinantes do Esporte é o fato de que nele a Humanidade descobriu como juntar dois universos aparentemente inconciliáveis: o Corpo e o Número. Nada mais concreto, palpável, único, individualizado do que o Corpo humano. E nada mais abstrato, imponderável, genérico e universal do que o Número. O Esporte (futebol incluído) é acima de tudo uma arte e uma ciência de utilizar as potencialidades do corpo (força, energia, flexibilidade, agilidade, coordenação motora, rapidez, etc.) para gerar estatísticas comparativas, e através delas estabelecer quem fez melhor e quem fez pior, quem ganhou e quem perdeu. Quando um nadador ganha a medalha de ouro (e o outro a de prata) por uma diferença de centésimos de segundo, isto é uma façanha do Corpo, mas estabelecida no domínio do Número, por um critério que o Corpo não distingue, e somente a Mente e a Máquina podem comprovar.

Romário fez mil gols? Ele e sua equipe dizem que sim, e aí entra a discussão sobre o que é um gol de verdade. Vale jogo amistoso? Vale jogo beneficente? Se eliminássemos esses golzinhos de partidas não-oficiais o Baixinho estaria com pouco mais de 900. O mesmo se diz das contas que atribuem 1.176 gols ao húngaro Puskas em cerca de 1.300 partidas, ou, num resultado ainda mais impressionante, ao craque carioca Friedenreich, das primeiras décadas do século 20, a quem são atribuídos 1.329 gols (bem mais do que os 1.283 de Pelé), mas que, descontados os gols não oficiais, teria marcado 554 gols em 561 jogos.
Parece conversa de sujeito desocupado em balcão de botequim, não é mesmo? As mulheres sentem um soberano desprezo pela categoria “Homem” quando nos vêem entregues a esse tipo de contabilidade. Para elas, o Corpo tem uma existência autônoma em si próprio, sem precisar de números de qualquer espécie. Nós, curiosamente, temos a mania do Número. O Corpo é uma máquina de produzir estatísticas, índices, escores. Só somos capazes de entendê-lo através de tabelas numéricas que descrevem suas performances. Pensando bem, é um milagre que a gente seja capaz de distinguir, sem recurso ao Número, quando um sujeito é um craque e quando é um cabeça-de-bagre.

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