quinta-feira, 17 de setembro de 2009

1265) Do cangaceiro ao traficante (3.4.2007)



Vi na TV uma entrevista com MV Bill, “rapper” que realizou documentários em vídeo como Falcão: Meninos do Tráfico, o qual foi exibido no “Fantástico” e provocou grande polêmica. A certa altura, Bill tocou no problema do que ele chama de “invisibilidade” do adolescente negro e pobre. Numa época em que os garotos começam a tornar-se homens, a definir sua personalidade, eles percebem que não existem. Ninguém olha para eles, ninguém se dá conta de sua presença – porque eles são negros e pobres. Só perdem essa invisibilidade (segundo Bill) quando pegam numa arma Um sujeito com um arma na mão todo mundo enxerga, todo mundo respeita.

Isto me lembrou um trecho do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, no Folheto LXXIX, “O Emissário do Cordão Encarnado”, no qual Quaderna presencia o debate político-ideológico entre Adalberto Coura, o esquerdista romântico, e Arésio Garcia-Barretto, o individualista cínico e violento. Diz Adalberto que os rapazes sertanejos entram para o Cangaço sabendo que irão morrer muito cedo, mas achando que é preferível uma vida intensa com uma morte prematura do que uma vida longa mas cheia de humilhações, e sem sentido.

Diz Adalberto: “Por isso, não se importa de viver perseguido como um cachorro mordido. Sabe que esse é o preço que terá que pagar para poder possuir mulheres com as quais, antes, não poderia nem sonhar, as filhas de gente poderosa, lindas e orgulhosas, que passeavam os olhos por ele sem nem ao menos o avistarem, como se ele não existisse, e que agora o vêem, com espanto, terror e perturbação, vestido com sua Armadura de couro e com as insígnias de prata de sua realeza, aparecendo diante delas não mais como um ser ignorado e desprezado, mas como o temeroso Senhor de sua honra e de seu destino, o Emissário de uma vida cruel, selvagem, errante e guerreira, fascinadora e terrificante”.

Não pode haver descrição melhor para o que acontece com esses garotos de Morro que aos dezesseis anos já estão cobertos de colares de ouro e roupas importadas, com duas pistolas enfiadas no cinto e um AR-15 a tiracolo, desfilando no interior da favela como se fossem Reis. Sabem que vão viver pouco, mas não ligam. Estão vivendo muito.

Aqui no Nordeste celebramos e endeusamos os Cangaceiros porque eles são para nós os símbolos de uma vida livre e guerreira, de uma ruptura e de um inconformismo que, mesmo não tendo pretensões revolucionárias de mudar a sociedade (que algumas obras de arte lhes atribuem, projetando neles uma ideologia que é só do autor), romperam com a vida de servilismo e exploração, revoltaram-se contra um destino que lhes era imposto. O que admiramos neles não são os atos que praticam, é a coragem de terem deixado de praticar o que praticavam antes, e que, apesar de humilhante, era mais seguro. Como podemos, então, estranhar que algumas pessoas das favelas (não todas, nem muitas) façam desses novos cangaceiros os seus ídolos?

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