sábado, 29 de agosto de 2009

1222) “Carinhoso” (11.2.2007)




Parei para escutar pela milésima vez “Carinhoso”, que já toquei tanto ao violão em antigas serenatas. Belo exemplo de letra que se encaixa numa música pré-existente, letra submissa à música, sem poder alterar uma nota sequer da melodia. Se alguém dissesse que a letra foi feita primeiro, e depois musicada, muita gente acreditaria. Segundo consta, a melodia foi composta por Pixinguinha em 1917, e gravada em forma instrumental em 1928. Em 1936, por sugestão da cantora Heloísa Helena, Braguinha se dispôs a “letrar” aquela música que, embora conhecida no meio artístico, não tinha produzido qualquer impacto no público. Pixinguinha ensinou-lhe a melodia, tintim por tintim. Ele foi para casa, e no outro dia trouxe a letra pronta. Orlando Silva a gravou em 1937, e o resto, inclusive as duzentas regravações desde então, é História.

A canção vai se abrindo aos poucos. “Meu coração... Não sei por que...” Duas frases melódicas idênticas, às quais se sucede uma terceira, em melodia ascendente (“Bate feliz...”) e uma quarta que se ergue triunfal (“Quando te vê!...), recriando de maneira quase dramatúrgica a emoção do surgimento da mulher amada. Em seguida, melodia e letra saem como que valsando juntas pelo espaço afora, numa sucessão de frases e acordes: “E os meus olhos / ficam sorrindo / e pela rua / vão te seguindo...” Um rodopio de felicidade que vai amainando aos poucos quando letra e melodia se recolhem, tímidas, imobilizando-se na constatação grave: “Mas mesmo assim... foges de mim”.

Vem uma modulação, iniciando outra seqüência (é uma canção de estrutura dramática, mesmo não sendo nem narrativa nem visual). Novamente sozinho, o poeta “muda de tom” no pensamento, e fala consigo mesmo dirigindo-se a Ela: “Ai, se tu soubesses / como eu sou tão carinhoso / e o muito, muito que te quero, / e como é sincero o meu amor, / eu sei que tu não fugirias mais de mim...” Vejam com que fluência estas frases se sucedem na melodia, exprimindo sem esforço um conceito que sintaticamente só se fecha no final (“se tu soubesses, não fugirias”). E então o poeta chama, clama, reclama em quatro notas e quatro imperativos: “Vem! Vem! Vem! Veeem!...” Braguinha, com simplicidade e nitidez, sentiu a necessidade de um mesmo monossílabo, para corresponder à subida e à insistência da melodia.

O quarto “vem” vai meio-tom além daquele “vê” (do “quando te vê” da primeira estrofe), e o poeta, como quem finalmente ultrapassou uma barreira, exige: “Vem sentir o calor / dos lábios meus / à procura dos teus...” E em seguida, letra e música voltam a valsar juntas em acordes sucessivos: “Vem matar / esta paixão / que me devora o coração / e só assim então / serei feliz / bem feliz”. A canção termina igualmente numa frase descendente, mas agora é o repouso após o triunfo. Calado, contemplativo, o poeta permitiu que a melodia arrebatasse suas palavras, e libertasse tudo o que tinha para dizer. Chama-se a isto Uma Aula De Letra.




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