domingo, 23 de agosto de 2009

1215) Embebido em palavras (3.2.2007)




(Lord Macaulay)

Todo mundo que escreve já experimentou a sensação de se plantar diante de uma página em branco (onde se lê “página” leia-se “tela de monitor”) e sentir-se mais em branco ainda. O cara precisa escrever, vive dessa atividade, preparou-se para isto a vida inteira, assumiu compromissos, assinou contratos, já gastou o dinheiro do adiantamento... e (cedo a palavra ao mestre Augusto) “tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!”. É o famoso “writer’s block”, o bloqueio criativo que em alguns casos patológicos chega a durar anos a fio. Perguntem a Raduan Nassar, a Felipe Alfau, a Arthur Rimbaud. Todos dirão que “foi de propósito”.

Existe uma diferença crucial entre a função imaginativa da mente e o ato de escrever. Os leigos pensam que as duas coisas são uma só. Pois não são. Imaginar é mental, escrever é físico. Na grande maioria dos casos, o indivíduo tem predisposição para uma, e com a ajuda dela começa a estimular a outra até desenvolvê-la, como quem faz exercícios num aparelho de academia para desenvolver um músculo específico. Alguns escritores passam anos a fio tentando escrever de um jeito que não lhes convém, até encontrarem o jeito certo: a mão, à máquina, com lápis, com caneta, em pé, sentado, de dia, de noite... Escrever é uma tarefa corporal, um esforço físico, como tocar um instrumento musical. Pensar todo mundo pensa. Se eu escrevesse todos os livros que surgem já prontos na minha cabeça, ia faltar papel no Brasil.

Lord Macaulay, grande historiador britânico, disse na velhice que sua capacidade para reconstituir épocas e lugares remotos se devia a sua capacidade de fantasiar, de sonhar acordado: “Fico sonhando grande parte do meu tempo; talvez não mais do que antes, mas antigamente eu sonhava meus sonhos diurnos andando; agora os sonho sentado, perto da lareira. Se tiver vida para isso, escreverei sobre esse estranho hábito uma dissertação mais completa do que jamais foi escrita sobre esse assunto. É um bom hábito, sob certos aspectos. Eu, pelo menos, lhe atribuo grande parte dos meus sucessos literários”.

A melhor maneira de “ser bom” numa atividade é pensar nela o tempo todo. É conduzir a si próprio para um estado mental de atividade incessante, confrontando idéias, fazendo e respondendo perguntas, propondo problemas, inventando soluções. O poeta Hart Crane dizia: “O indivíduo deve estar encharcado de palavras, literalmente embebido delas, para que elas possam se combinar da maneira certa no momento certo”. Pensar é fácil, ou melhor, imaginar é fácil para um grupo específico de pessoas. Manter esse estado mental durante o enfrentamento físico com o instrumento (seja caneta Bic ou computador) são outros quinhentos. Escrever pode até embaralhar o pensamento. Augusto dos Anjos era um que compunha o poema mentalmente, corrigia, revisava, decorava, e só depois passava-o para o papel, para que esta tarefa física não interferisse na sua concentração criadora.


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