sexta-feira, 14 de agosto de 2009

1198) As oferendas ao Minotauro (14.1.2007)



Quando o filme Cazuza estava em cartaz, li num jornal a carta de um leitor perplexo diante do culto que, segundo ele, nossa sociedade prestava à figura de um jovem pelo simples fato de ele ter sido homossexual, ter usado drogas e ter morrido de Aids. "Será que não temos exemplos melhores para exibir aos nossos filhos?", perguntava o aflito missivista. 

Eu entendo essas preocupações, mas discordo do diagnóstico final. Cazuza não é um cais do porto, é um farol; não é um exemplo, é um alerta. O que se celebra em torno de Cazuza é o mesmo que se celebra em torno de um piloto como Ayrton Senna ou de um alpinista como Vitor Negrete: o sacrifício voluntário de uma vida jovem no altar de uma religião inexplicável. 

Um dos mitos que cercam a figura do Minotauro de Creta diz que todos os anos a cidade de Atenas tinha que oferecer sete rapazes e sete moças para serem devorados pelo monstro. Este sacrifício parcial evitava que Atenas inteira fosse destruída por Creta, que era então militarmente superior. 

Algo parecido ocorre com os deuses-monstros que adoramos em nossa era tecnológica e industrial: a Guerra, a Droga, a Máquina, o Número

No centro de cada um deles existe um buraco-negro exercendo uma atração irresistível sobre quem se aproxima demais. Depois de ultrapassado um certo limite, não existe volta. E quem ousa aproximar-se desse limite são justamente alguns dos nossos jovens mais brilhantes, mais inquietos, mais corajosos, e, infelizmente, porque tais características muitas vezes insistem em vir juntas, mais imprudentes, mais autoconfiantes, mais egoistamente suicidas. 

Sacrificamos jovens no altar da Guerra porque ela nos traz a ampliação de territórios, a humilhação dos inimigos, a garantia de uma paz temporária. 

Sacrificamos jovens à Droga porque ela nos garante o êxtase dos paraísos artificiais, e para que um milhão possam conviver com a droga e desfrutá-la vale a pena perder sete rapazes e sete moças por ano. 

Sacrificamo-los também à Máquina, porque para criá-la e domesticá-la é preciso haver cobaias que extraiam dela o máximo, expondo seu poder e seus limites, ainda que explodindo mais cedo ou mais tarde. 

Sacrificamo-los ao Número: porque precisamos de façanhas que robusteçam nossa auto-estima como povo: somos nós o povo que foi mais longe, o que fez mais rápido, o que tem mais força, o que acerta mais vezes. 

Não sei o que responderiam os pais de Cazuza ou os de Senna se lhes fosse dado escolher que seus filhos vivessem vidas banais, felizes e pacatas até os 80 anos de idade. É uma dura escolha: é melhor ser um Mito, ou ser meramente feliz?. Todos os anos o Acaso sorteia os sete jovens com que pagaremos o tributo às forças que movem ou que inebriam nossa civilização. Por isto os admiramos: porque o destino de cada um nos mostra o umbral que não é possível cruzar vivo.





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