A revista Piauí de dezembro traz um artigo de Cassiano Elek Machado sobre as dificuldades de se publicarem textos inéditos de Guimarães Rosa, devido aos empecilhos criados por seus herdeiros. Rosa foi casado com D. Lygia (Lili) com quem teve as filhas Vilma e Agnes. Quando foi trabalhar na embaixada brasileira em Hamburgo, em 1938, conheceu Aracy Moebius, com quem ficaria casado até falecer em 1967. Os direitos autorais de seu espólio pertencem à viúva Aracy e às duas filhas. Nem sempre chegam todos a um acordo sobre o que pode ou não ser publicado, e qual o preço a pagar. Este é o tema do artigo de Cassiano Elek, cuja leitura recomendo a todos os interessados em Rosa e na questão delicadíssima dos direitos autorais de um autor falecido.
Uma das questões levantadas no artigo é o direito de publicação do material deixado inédito por Rosa, principalmente cartas e diários. Existe hoje uma mini-indústria editorial acadêmica sobre a obra do escritor mineiro, e uma demanda insaciável por mais e mais material de análise. É muita gente pesquisando. Os dois volumes do Seminário Internacional Guimarães Rosa (1998-2000, 2001), da Editora PUC-Minas, com centenas de autores e ensaios acadêmicos, somam mais de 1.600 páginas. Alguns ensaios são brilhantes, outros nem tão brilhantes mas utilíssimos, outros de uma vacuidade espantosa. Mas tudo bem, a vida é assim mesmo. O que importa é que quem quiser se aprofundar na obra de Rosa tem onde ir buscar.
O problema é a vida pessoal. A família tem todo o direito de escolher o que preservar. Rosa sempre foi discreto, e seus herdeiros cantam no mesmo tom. E hoje em dia, vamos e venhamos, existe uma indústria do escândalo, da fofoca, do boato impresso. Gente ansiosa para descobrir (ou inventar) “podres” em pessoas famosas, até porque os famosos de hoje em dia – não na literatura, mas na TV, na música, na moda, na política – industrializam os boatos sobre si próprios, e faturam em cima deles. Qualquer família com um mínimo de dignidade e bom-senso se assusta e diz: “Tô fora”. Mesmo quando a intenção do biógrafo é séria.
Já reclamei aqui da inexistência de uma grande biografia de Rosa (“Uma biografia de Guimarães Rosa”, 19.8.2003). O fato da família fechar-se em copas, mesmo compreensível, é lamentável, porque essa biografia talvez só venha a ser escrita daqui a uma geração, quando será impossível entrevistar as pessoas que conviveram com o autor. A recente biografia de Roberto Carlos (cujo autor o “Rei” ameaça processar) nos lembra do perigo do biógrafo discordar do biografado; mas por outro lado, quem está interessado em ler uma biografia chapa-branca, em que o dono da história censurou os trechos de que não gostava? Dizem que Pilatos perguntou a Cristo: “Quid est veritas?” (“O que é a verdade?”), e este respondeu com um anagrama: “Est vir qui adest” (“O homem diante de ti”). Em alguns casos, nunca saberemos a verdade, e nunca enxergaremos o homem.
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