domingo, 28 de junho de 2009

1136) A burocracia da paranóia (3.11.2006)




Há um conto magnífico de Ray Bradbury em que um sujeito vai à casa de outro, os dois discutem, e ele mata o dono da casa. Antes de fugir, lembra que deve ter deixado impressões digitais nos objetos que tocou: o copo de uísque, o braço da cadeira, livros na estante, a maçaneta... Ele puxa o lenço e limpa isto tudo. Aí lembra que foi ao banheiro. Vai ao banheiro e limpa tudo em que tocou. Aí lembra que passou no corredor, e limpa as paredes. Na manhã seguinte a polícia o encontra no sótão, limpando bicicletas enferrujadas, velhos baús trancados, coleções de moedas do tempo da Guerra Civil.

É um belo exemplo do que eu chamo “A Solução Herodes”: a tentativa desesperada de eliminar todas as possibilidades de insucesso, por mais remotas que sejam. É típico da mentalidade norte-americana... Não, peraí, estou sendo injusto, e pior do que injusto, inexato. É típico da mentalidade puritana que tanto influenciou os EUA a partir da Nova Inglaterra. Aquela mentalidade altiva, ascética, purista, para quem tudo é pecado, menos a arrogância e o orgulho.

Não é só dos americanos, claro. E nem é sempre uma coisa negativa. Todo povo precisa em certa medida dessa mentalidade preocupada com a exatidão, a limpeza (“venha cá, deixe eu olhar se lavou atrás da orelha”). Nós brasileiros temos muito a aprender com ela, porque somos latinos, tropicais, com um pé na África e outro na selva, etc. e tal. Mas vamos e venhamos – ela não pode deixada à solta, entregue a si própria, e de posse das rédeas do mundo. “Precisamos limpar a Terra, extinguir todas as bactérias do mundo, micróbios são fonte de doença, precisamos lavar os bebês com água sanitária e dar-lhes purgante de detergente!”

Os aeroportos americanos têm uma lista de “No Fly”, pessoas que não podem embarcar. Vi um diálogo surrealista entre um repórter e um oficial da segurança. O repórter observa que a lista tem os nomes de 14 dos sequestradores de aviões do 11 de setembro. “Peraí, diz ele, esses caras não morreram?” O funcionário explica que um novo terrorista pode assumir as identidades deles e tentar embarcar para cometer um novo atentado. E agora sou eu que pergunto: não seria mais seguro para um terrorista assumir uma identidade que chamasse menos a atenção?...

A lista de “No Fly”, cheia de nomes de pessoas suspeitas, pressupõe que esses terroristas em potencial tentarão viajar com seus próprios documentos, e que jamais lhes ocorreria falsificar uma identidade. Por outro lado, o oficial explica a ausência de alguns nomes na lista: há terroristas conhecidos que não aparecem nela porque estão sob investigação, e a divulgação de seus nomes os colocaria em alerta... Em compensação, a relação inclui nomes genéricos como “Robert Johnson”. Será porque o bluesman falecido em 1938 tinha pacto com o Diabo? Na América puritana de Bush tudo é possível. Ou seja: se você se chama Robert Johnson, é melhor viajar de trem. Para o México, com um bilhete só de ida.

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