(O Livro dos Salmos)
Era uma tarde plúmbea e tempestuosa naquele recanto remoto da Irlanda. Um monge recurvo caminhava pela charneca, pensativo, sobraçando seu livro dos Salmos de Davi. Corria o ano de 1006. O Milênio, com seus presságios e portentos, tinha vindo, e tinha passado. E o mundo continuava existindo. Os céus não se tinham aberto para dar passagem a legiões de anjos com espadas flamejantes. A única ameaça aos que ali moravam eram as imprevisíveis incursões dos vikings, que desembarcavam na costa e rompiam pelo território adentro, deixando atrás de si uma trilha de incêndios e vilas saqueadas.
O monge sentou-se numa pedra, abriu o livro no seu Salmo preferido, e leu em silêncio: “Quão amáveis são os teus tabernáculos, Senhor dos exércitos! A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne se regozijam no Deus vivo”. O vento agitava as urzes e as samambaias; ao longe, ouvia-se o balido das ovelhas que um pastor trazia de volta ao aprisco.
Vozes roufenhas fizeram o monge erguer os olhos do texto: na crista da colina mais próxima, ele avistou uma horda de guerreiros imundos e barbudos, com escudos enlameados, que descia a trilha em sua direção. O coração começou a saltar-lhe dentro do peito. Não temia pela sua vida: temia a destruição daquele manuscrito que imprudentemente costumava retirar da biblioteca do Mosteiro, para fazer-lhe companhia em seus passeios. Sem hesitação (porque já temera aquela cena, e por temê-la tinha se preparado para ela) envolveu o manuscrito em sua capa de couro, e, agachando-se, arrancou um pedaço da turfa espessa que cobria o solo. Ali, sob a camada vegetal em lenta decomposição, o precioso livro ficaria oculto para que viesse buscá-lo mais tarde, caso escapasse com vida.
Não sabemos se escapou. Sabemos que passaram-se os meses, os anos, os séculos. A Terra deu mil voltas em torno do Sol. Impérios e civilizações ergueram-se e ruíram. Os homens criaram máquinas insensatas e trovejantes, com as quais deixavam, atrás de si, trilhas de incêndios e metrópoles saqueadas. O mundo transformou-se numa colmeia fervilhante de maquinismos. Um destes maquinismos, um “bulldozer” da construção civil, estava revolvendo a turfa ressequida de um pântano, quando o homem que o manejava viu um objeto brotando daquela massa informe, e parou tudo para ver o que era.
A descoberta do Livro de Salmos do Pântano Irlandês (http://en.wikipedia.org/wiki/Irish_bog_Psalter ) foi considerada pelos arqueólogos o maior achado histórico feito na Irlanda nos últimos duzentos anos. Especialistas estão tentando recuperar e descolar as 20 páginas do manuscrito. Protegido do sol e do excesso de umidade, seu texto latino ainda pode ser lido, mil anos depois. Porque está escrito: “Até o pardal acha casa para si, e a andorinha ninho para si, onde possa criar os seus filhotes: junto aos teus altares, Senhor dos exércitos, Rei meu, e Deus meu”.
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