sábado, 11 de abril de 2009

0962) A mulher que nada esquece (16.4.2006)




(Jean Dubuffet, "Thêatre de Mémoire")

Como a mente funciona? Este é um dos mistérios que mais têm botado minha mente para funcionar ao longo deste último meio século. 

Percepção sensorial, memória e imaginação são três territórios cuja existência específica me parece óbvia, mas os três estão misturados como café, leite e açúcar numa xícara. Bebemos o líquido e percebemos que os três estão lá, mas só podemos percebê-los em conjunto. Não dá pra desmisturar.

Cientistas da Universidade da Califórnia, em Irvine, estão há alguns anos estudando uma mulher cuja identidade é protegida pelas iniciais AJ. Ela parece ter memória de tudo que já lhe passou pela cabeça ao longo da vida, mas parece ser uma “pessoa normal”, ao contrário da maioria dos chamados “mnemonistas” ou indivíduos com memória excepcionalmente precisa (ver “A amnésia”, 20.9.2003). 

Também não é como o famoso personagem de Borges, “Funes, o memorioso”, que era capaz de reviver mentalmente um dia inteiro de seu passado, mas isto lhe consumia um dia inteiro de seu presente.

AJ parece simplesmente lembrar qualquer detalhe que tenha passado pela sua cabeça. Lembrava-se do dia em que um dos entrevistadores tinha viajado à Alemanha anos atrás (o cientista não tinha certeza nem sequer do ano). Quando alguém da equipe lhe perguntou se ela sabia quais os dias em que tinham conversado, ela desfiou a lista inteira, por ordem cronológica. 

O cientista lhe perguntou, ao acaso, se ela sabia quem era Bing Crosby (famoso cantor da década de 1940-50). Ela disse que sim. “Sabe como ele morreu?” E ela: “Sim, morreu jogando golfe, na Espanha”, e disse a data e o dia da semana. 

Ela parece recordar instantaneamente tudo que sabe, mas, ao contrário de Funes, é capaz de encapsular recordações complexas em uma ou duas frases.

Mnemonistas geralmente são indivíduos meio desajustados, como o que foi estudado pelo Prof. Luria (“O mnemonista”, 26.8.2003); a gigantesca massa de informações e os intrincados métodos de memorização parecem ocupar sua atenção o tempo inteiro. 

Não é o que ocorre com AJ, que parece ser uma mulher normal, só que excessivamente organizada – na infância, costumava reclamar sempre que sua mãe mudava algum objeto do seu lugar habitual.

Algumas teorias psicológicas afirmam que não esquecemos nada, todas as coisas que soubemos continuamos a saber, tudo aquilo que pensamos “está escrito” em algum lugar, o problema é não sabermos como acessar isto. 

Emoções fortes costumam gravar memórias de maneira indelével, e podem desempenhar um papel também no processo de evocá-las, daí que algumas pessoas afirmem que nossa vida inteira passa como um filme diante de nossos olhos quando achamos que vamos morrer. 

O caso de AJ é interessante porque é um exemplo que conjuga memória excepcional e aparente “normalidade” de um indivíduo sem traços de autismo, excentricidade ou anti-sociabilidade. Talvez AJ seja aquilo que todos seríamos se fôssemos normais.






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