Perdoe o leitor a franqueza do título; justifico-o alegando que há termos ainda mais grosseiros. Visitem o Aurélio ou o Houaiss, e vejam a verdadeira hiléia verbal que floresce sobre a mais antiga das profissões. E na música popular, então, a coisa é ainda mais séria. Mulheres-da-vida têm sido um tema predileto dos compositores. Por que será? Maldo eu que pela instintiva percepção do quanto as duas profissões se parecem.
Chico Buarque desceu fundo a esses abismos, começando pela injustamente esquecida “Umas e Outras”, onde compara as vidas de uma freira e de uma rameira: “O acaso faz com que estas duas / que a sorte sempre separou / se cruzem pela mesma rua / olhando-se com a mesma dor”. Em “Ana de Amsterdam” (com Ruy Guerra), a mulher-da-vida conta na primeira pessoa: “Sou Ana de vinte minutos / sou Ana da brasa dos brutos na coxa que apaga charutos / sou Ana dos dentes rangendo / e dos olhos enxutos”. Em “Geni e o Zepelim” ele recria magistralmente uma canção de Bertolt Brecht (ver “Histórias contadas muitas vezes”, 30.7.2003).
Alguém precisa tomar vergonha e escrever um estudo sobre as canções de MPB e a mitologia masculina envolvendo a meretriz e o freguês apaixonado. “Corrientes 348” seria um bom título para esse livro, que não poderia esquecer a obra monumental de Adelino Moreira: “Meu vício é você” (“Eu quero este corpo que a plebe deseja / embora ele seja prenúncio do mal”), “A flor do meu bairro” (“Ela fingindo desejo a boca me ofereceu / e eu paguei por um beijo que no passado foi meu”), “Mariposa” (“Segue o teu caminho, mariposa, já que esta luz te embriaga”) e dezenas de outras.
Há uma canção cujo autor não sei, porque tem um título (“Flor do Lodo”) usado por muitos compositores. A que lembro começa dizendo: “Nesta madrugada calma e fria, venho, ó mulher, me despedir...” e termina: “Não posso mais viver ao teu lado, mulher, flor do lodo, adeus”. Talvez os intérpretes sejam a dupla Bolinha e Biá, que já nos deu a primorosa “Boneca Cobiçada”: “Boneca cobiçada das noites de sereno / teu corpo não tem dono, teus lábios têm veneno...” E tem a “Boneca de Pano” de Assis Valente: “Em vez de boneca de louça / hoje é boneca de pano / em um sombrio cabaré”. E tem o clássico samba-de-zona gravado por Abdias: “E eu / pra não morrer de tristeza / me sento na mesma mesa / mesmo sabendo quem és”.
Pretendo dedicar um dia um artigo inteiro à obra-prima “Dolores Sierra” de Wilson Batista e Jorge de Castro, se não o fizer antes celebrando a eterna “Conceição” celebrizada por Cauby Peixoto. Meninas pobres que vão na conversa dos rapazes ricos, como a “Rita de Zé Pinheiro” do poema do saudoso Ramalho Filho. Mulheres que na adolescência foram iludidas por homens adultos; depois de maduras e “escoladas”, vingam-se, pintando-os-canecos com os bestas que caem nas suas garras, e no fim das contas a gente não sabe de quem sentir mais pena. Garçom! Apague a luz e traga a saideira.
Braulio, o crédito da canção confirma Biá. Aqui: http://letras.terra.com.br/goia/960369/
ResponderExcluirótima série, esta.