sábado, 21 de março de 2009

0897) O mistério do artista japonês (31.1.2006)


(Yuri Firmeza)

Deu no “Globo” no último dia 23, mas eu já sabia, porque sou leitor da coluna de Ricardo Kelmer (http://www.ricardokelmer.net/). O Museu de Arte Contemporânea de Fortaleza anunciou no Centro Cultural Dragão do Mar uma exibição de obras do artista japonês Souzousareta Geijutsuka, com fotos, instalações, e a proposta de discutir “a harmonia entre a natureza que nasce e morre, empregando equipamentos tecnológicos, para abordar a discussão em torno da fragilidade da vida e suas conseqüentes contradições”. O MAC forneceu à imprensa o email do artista, que concedeu uma entrevista de página inteira a um jornal local. Dias depois, bomba! O artista não existia, era uma brincadeira (ou, mais contemporaneamente, um artifício mimético expondo a fratura metalinguística do capitalismo virtual em que a própria noção de Arte se desmancha no ar) do artista cearense Yuri Firmeza, que não se perca pelo nome.

O Museu coçou a cabeça mas, precavido, admitiu que, sendo a Arte de hoje o que é, aquela era uma proposta saudável e instigante. Quem não gostou foi a imprensa, que engoliu a isca com anzol, caniço e tudo, mas se engasgou com o pescador. Saíram protestos nos jornais, o artista foi chamado de “moleque”, etc. (Cobertura completa em: http://www.dragaodomar.org.br/macce/galerias/2006_01/invasor/index_invasor.htm.)

Olha, qualquer jornalista corre o risco de cair numa dessas. Eu mesmo já caí. Anos atrás, li no “Letras & Artes” daqui do Rio uma entrevista com um fotógrafo alemão chamado Gedencher, que afirmava deixar placas fotográficas expostas ao relento para captar relâmpagos em noites de tempestade. Achei fascinante a idéia, e já estava indo procurar álbuns dele na Livraria Leonardo da Vinci quando recebi um telefonema do autor da entrevista, o escritor cearense Carlos Emílio Corrêa Lima, o qual me segredou que Gedencher não existia, e aquilo tudo era uma pegadinha urdida por ele (o termo que usou foi “metaficção”).

Parece que é coisa de cearense, mas não é. O erudito e respeitável Adolfo Bioy Casares, depois de ler uma resenha de seu amigo Jorge Luís Borges sobre um livro indiano publicado em Londres ( “A Aproximação a Almotásim”), encomendou um exemplar à editora, e só depois Borges confessou tratar-se de metaficção.

A esta altura, já estou me perguntando se o próprio Yuri Firmeza não será um heterônimo de Carlos Emílio. Depois que Marcel Duchamp impingiu um mictório como obra de arte e Borges inventou a falsa resenha, houve uma brusca redução de espaço entre Real e Simulacro, entre Ficção e Não-Ficção, e assim por diante. No caso das artes plásticas, no século 20 houve um enorme esforço coletivo para reduzi-las a “gestos conceituais”, esvaziando-as de tudo que lembre artesanato, trabalho manual, técnica, execução. Ser artista é tentar inventar uma ruptura nova, o que, aliás, só funciona onde essa ruptura nunca tinha sido tentada, ou o fora sem deixar cicatrizes. Parece que em Fortaleza a marca vai ficar.





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