sábado, 7 de março de 2009

0873) Canções de trem (3.1.2006)



Prossigo em minha catalogação dos gêneros musicais através das letras. Os pesquisadores comuns classificam as músicas pelo seu ritmo (samba, rock, frevo, tango, etc.), ou seja, pelo modo como elas revelam os movimentos do nosso corpo. Pois para mim as letras revelam com igual intensidade os movimentos de nossa mente, e agora sugiro um gênero que me parece de bom tamanho: “Canção de Trem”. Já antevejo algum leitor de má vontade dando de ombros: “Onde já se viu! Daqui é pouco qualquer coisa é gênero de canção: canção de escova-de-dentes, canção de vassoura, canção de bule, canção de binóculo...” Nada disso, amiguinhos. Canções sobre o universo mágico e mítico dos trens estão no DNA de nossa memória social. A imagem poética do trem possui um poder hipnótico irresistível sobre nós, acenando-nos com horizontes, com deslocamentos e contemplações, com grupos de desconhecidos que partem juntos rumo a uma aventura. E seu próprio ritmo já faz pensar numa canção, basta ouvir a sanfona de Luiz Gonzaga em “Mangaratiba”.

“Um trem de ferro, uma estação... Uma saudade no coração... Trem de ferro quando parte, parte o coração da gente” Uma canção que minha mãe cantava na minha infância, e cujo autor ou intérprete não faço idéia de quem seja. Nostálgica; mas muito distante do terrível “Down Bound Train”, o trem satânico do pesadelo de um alcoólico da obra-prima de Chuck Berry, com sua caldeira cheia de cerveja e duendes jogando pás de ossos na fornalha. Distante, também, do “Mystery Train” gravado por Elvis Presley, “that long black train carry my baby and gone”, uma daquelas canções, como diz Greil Marcus, que dizem “o mundo é assim, e você não pode fazer nada a respeito”. Ou o “Downtown train” de Tom Waits: “Will I see you tonight, in the downtown train?” onde as garotas pobres do Brooklyn tentam escapar dos seus mundinhos minúsculos.

Os trens brasileiros parecem ser menos atemorizantes. É o “Trem das Onze” de Adoniran, cuja única ameaça é a mãezinha dormir só enquanto o filho passa a noite nos braços da amada. É o “Trenzinho Caipira” de Villa-Lobos, letrado “a posteriori” por Ferreira Gullar, resultando numa canção lírica, de época: “Correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo mar...” É o trenzinho igualmente ingênuo de João Gilberto: “O trem, blim-blão, blim-blão, vai saindo da estação...” Ou o trem febril, eufórico, onomatopaico de Ascenso Ferreira, cantado por Alceu Valença, deslumbrado com a paisagem canavieira, em “Vou danado pra Catende”.

Em nosso país, onde a indústria automobilística e os cartéis da gasolina passaram seu rolo compressor por cima do transporte ferroviário, o trem virou peça de museu, virou um objeto de nostalgia, de encantamento, um símbolo aconchegante da infância ou da saudade. Não tem a solidão angustiante do trem postal em que Bob Dylan diz ter passado a noite inteira encostado à janela, olhando a escuridão. Os trens vão para qualquer lugar, depende do bilhete que se compra.

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