quinta-feira, 5 de março de 2009

0864) O fim e o princípio (23.12.2005)



Um dos filmes que me tocaram mais de perto em 2005 foi o documentário O fim e o princípio de Eduardo Coutinho, feito no sertão do Rio do Peixe, na Paraíba. Comporia um excelente programa duplo com A pessoa é para o que nasce de Roberto Berliner, o documentário sobre as ceguinhas de Campina Grande. Ou com um filme que vi há muitos anos, e de cujo título não lembro mais, onde eram entrevistadas vítimas sobreviventes do Holocausto judeu, que exibiam as cicatrizes, as deformidades, os números tatuados no antebraço.

Coutinho pegou uma equipe e danou-se para os confins da Paraíba, sem roteiro, sem projeto, sem plano. O filme que surgiu dessa aventura é uma amostra de que o cinema tem o poder de alçar a grandezas míticas a vidinha sem-importância de uma “cidadezinha qualquer”, de gente que “não é ninguém”. É refrescante como um colírio poder ver a imagem e o som fazerem isso com gente que em princípio não é bonita, não é rica, não é famosa, não fez nada de excepcional na vida. Exceto sobreviver.

Coutinho acabou fazendo um filme sobre gente velha cujo grande triunfo e cuja grande surpresa é ter conseguido ficar viva durante 70, 80 anos. São anciãos com rostos recortados como xilogravuras, com dentes entramelados, vozes roucas, peito encatarrado, corpos devastados por uma vida de privações, de trabalho, trabalho, e mais trabalho. São pobres, mas não miseráveis. Vemos suas salas ajeitadinhas, uns moveizinhos modestos, quadros nas paredes, mesas com cadeiras, a onipresente TV.

O melhor deles são os olhos. Esta aqui tem um olhar sereno, pacificado, de quem pagou cada centavo das muitas dívidas com o mundo, e cujo maior prazer é ver uma novelazinha pra se distrair, e depois cochilar no chão. Outra tem olhos angustiados, queixa-se de que não consegue dormir, passa a noite sentada na rede, “fumando e tomando café”. Outro mal consegue olhar alguém de frente, mas mostra o troféu que ganhou num concurso de poesia, e recita sílaba por sílaba o soneto premiado. Outro tem olhos alucinados de intelectual semi-letrado que soletrou a Bíblia em demasia. Outro tem olhos ariscos, inquietos, que riem, ficam sérios, não param, o tempo todo tentando se esquivar das ciladas que o “doutor” que o entrevista certamente deve estar lhe armando.

São os sobreviventes do Holocausto nordestino, onde se continua a morrer “de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. Todos dão a impressão de que foram ao Inferno e voltaram para contar a história, embora prefiram esquecê-la. Não são ressentidos, não temem a morte, não se queixam dos Governos, repartem a refeição, oferecem hospitalidade. Do pouco que têm, metade está sempre à disposição de quem precisar. Eduardo Coutinho entrevista essas pessoas com a compassividade e a empatia de um correspondente de guerra que testemunha horrores e heroísmos, praticados em nome de um conflito sangrento cuja razão ninguém consegue lhe informar.

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