quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

0811) O barulho e o silêncio (23.10.2005)




Já dizia o Budista Tibetano: “O que é criado no barulho é para ser vivido no barulho, e o que é criado no silêncio é para ser vivido no silêncio”. A cultura mega-urbana nos impõe um atordoamento sensorial constante, principalmente nos tímpanos. O cinema nem precisa falar: é Som Dolby Stereo onde a gente tem que ver uma briga de gangues com uma exatidão sonora onde se registra até o som da queda de um grão de poeira. O teatro é aquele bundalelê dionisíaco de sempre, com muito som e muita fúria. A música, ou é orquestra sinfônica, ou então é a atual e mortífera simbiose entre a guitarra elétrica e o bombo-de-maracatu. E assim por diante.

A literatura, benza-a Deus, continua a ser uma das últimas ilhas de silêncio que nos restam. Apesar de não ter recusado nenhum dos “gadgets” da era digital-eletrônica (computadores, hipertexto, CD-Rom, etc.) ela de certo modo ainda é praticada como o era mil anos atrás. Eu escrevo a maioria das coisas no teclado, mas quando tenho uma dificuldade qualquer eu sento no sofá, abro um caderno e pego a caneta. O ritmo da escrita à mão, mais pausado, mais de acordo com nossa respiração natural, ajuda a assentar a poeira, a trazer as idéias de volta para o lugar. Escrever à mão é um pouco como “passar primeira” ao se dar partida num carro. Depois que pega o embalo, a gente senta no teclado e prossegue, em segunda, terceira, quarta...

Houve um tempo em que a melhor coisa de escrever em computador era a possibilidade de botar um CD, um par de headphones, e poder escrever às 3 da madrugada ouvindo Rolling Stones no volume máximo, sem acordar a família ou a vizinhança. Hoje em dia, ouço cada vez menos música enquanto escrevo. Prefiro o trilar dos grilos. O ronco momentâneo de um carro que passa na rua e some para sempre. Tiros distantes na favela mais próxima. O som distante de um TV ligada noutro andar, um telefone que toca por trás de portas trancadas. O ronronar tranqüilo do computador aqui ao lado, e da geladeira lá na cozinha. O rascar macio da caneta no papel, um dos ruídos mais inspiradores que existem, sinal de que algo está acontecendo, sinal de que estou conseguindo fazer a ligação entre o espírito e a matéria.

A estrada editorial é longa, mas importa mais o que há nas extremidades do que o que existe no percurso. Numa das pontas dela, existe uma sala mergulhada no silêncio e na penumbra, uma mesa onde alguém se debruça sobre folhas de papel e escreve com algum tipo de caneta. Na extremidade oposta, outra sala, igualmente silenciosa e à meia-luz, onde outra pessoa, sentada numa poltrona ou diante de uma escrivaninha, lê um livro aberto à sua frente. Pouco importa que entre essas duas salas haja milhares de quilômetros, parques gráficos, caminhões, rugir de motores, guerras ou atividades industriais. Topologicamente, as duas salas pertencem ao mesmo espaço, e formam um só ambiente: o reino da palavra escrita, a arte de dizer coisas com o silêncio.

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