(Gustave Doré: "Lúcifer")
Um anarquista espanhol, daqueles que jogam granada em carro de general, viajava num navio, que naufragou, e ele acabou indo parar numa ilha desconhecida. Ao ser recolhido na praia pelos habitantes locais, perguntou: “Hay gobierno acá?” Disseram que sim. E ele: “Entonces, soy contra”. Ser contra o governo é em certos casos uma atitude mais biológica do que ideológica. Não tem nada a ver com política: é algo que está no sangue, no DNA de um sujeito. Tem gente que só sabe ser oposição, e ponto final. São criaturas inquietas, personalistas, que não se dobram facilmente, desconfiam de autoridades, querem ser donas do próprio nariz e decidir o próprio destino. Pessoas com temperamento assim só têm dois caminhos: ser contra o Governo, ou virar Governo. Ou seja: seu destino é a política (mesmo que seja a mera política literária).
Num ambiente social em que existe um conceito hegemônico, um conceito dominante, muita gente vai para o lado oposto por “default”, por uma opção assumida antes mesmo do exame do problema. Acho que somente isto explica o fato de que os jovens, por exemplo, tenham tanta fascinação pela imagem do Diabo. Quando eu tinha vinte anos, vivia lendo as “Litanias de Satã” de Baudelaire ao som de “Sympathy for the Devil” dos Rolling Stones. Quereria eu ser satanista, realizar missas negras, fazer sacrifícios humanos? Deus me livre, companheiros! Mas numa sociedade onde manda Deus e ponto final, tem horas em que um jovem se cansa e pensa, “sim, tudo bem, mas por que será que ninguém quer que eu escute o que o outro lado diz?” E vai em busca da Oposição.
Existe um movimento parecido nas pessoas que se cansam de literatura realista e vão em busca de literatura fantástica. O Realismo é o estilo literário eleito pela burguesia ascendente do século 18 em diante. É o retrato da mentalidade pragmática, objetiva, pão-pão queijo-queijo, que vê na linguagem um instrumento de exame, catalogação, apropriação e controle. Tudo que não seja voltado para o controle do mundo real é supérfluo, é fuga, é perda de tempo. Com um governo assim ditatorial e sufocante, muitos escritores e leitores se esgueiram para algum recanto escondido e vão ler histórias de vampiros e extraterrestres. Porque acreditam neles? Nem tanto. É só porque “são do contra”.
Na música também. Nos anos 1960, a MPB (de smoking e gravatinha borboleta) era o governo, e ser roqueiro era ser oposição. Hoje, o rock, inchado e balofo pelos silicones e esteróides do capital multinacional, é um governo arrogante e perdulário, e ser MPB é ser uma espécie de Resistência Francesa, que trabalha na moita, devagar e sempre, esperando que o dragão fique bêbado o bastante para permitir um ataque frontal. Sempre que um grupo chega ao topo, todas as suas energias se voltam para uma única tarefa: permanecer ali. E essa concentração de forças empurra para o extremo oposto todos os que, por biologia e fatalidade, são contra e acabou-se.
Simplesmente ótimo.
ResponderExcluirAbraços
Leonardo Nunes Nunes
http://seguidorlovecraft.blogspot.com/