terça-feira, 30 de dezembro de 2008

0701) O Raio da Silibrina (17.6.2005)



Me perguntam tanto que resolvi escrever um artigo encerrando esta questão de uma vez por todas. Quando alguém vier me perguntar: “Mas o que diabo quer dizer O Raio da Silibrina?...”, atacho o presente texto e estamos conversados.

Este termo surgiu para mim na infância. Tia Anunciada (que chamávamos Tia Nunum), minha tia mais jovem pelo lado materno, estava passando férias lá em casa. Meus pais foram ao cinema ou a um jantar, e ela juntou os sobrinhos para inventar uma travessura. Preparamos um boneco sentado no sofá da sala: um terno velho de meu pai, recheado de jornais amassados, sapatos, uma máscara de carnaval na cara, um chapéu, um copo na mão. Parecia uma pessoa de verdade. Como remate final, ela pendurou-lhe no pescoço um papel onde escreveu: “O Raio da Silibrina”. Quando meus pais chegaram e acenderam a luz da sala, tiveram um susto, e a gente morreu de rir.

Usei esse nome para batizar um personagem duma peça minha, com canções e tudo: Trupizupe, o Raio da Silibrina. Aí, já fiz uma mistura com o termo “trupizupe”, que é um dos diabos chamados para enfrentar Lampião no folheto de José Pacheco A Chegada de Lampião no Inferno. A música com o mesmo título acabou ficando conhecida, e alguém me disse que a origem do nome “silibrina” era um tipo de farol de carro que existia antigamente, “Sealed Beam”, que significa mais ou menos “brilho selado”, ou “farol blindado”. Quando um carro com este tipo de farol aparecia ao longe, de noite, nas estradas do interior, o raio de luz se via a quilômetros de distância, e os matutos diziam: “Eita, olha só o Rai do Silibim!” E aí ficou. Na década de 1960 houve um grupo de rock paulista, só de mulheres (acho que eram Rita Lee, Lúcia Turnbull, essa turma) que se chamava “As Cilibrinas”, o que levantou a interessante questão da grafia do nome – que continuo a preferir com “S”.

Recentemente minha irmã Clotilde levantou a questão mais uma vez, lembrando a lendária figura da “Sibila de Cuma”, uma daquelas pitonisas gregas que adivinhavam o futuro, e cuja história é contada num livro com o título “Oracula Sybyllina”. Pode ser mera coincidência que isto lembre o som de “O Raio da Silibrina”, mas é de se ficar pensando, devido aos pendores místicos, transcendentais, proféticos e ininteligíveis de ambas as entidades.

Em todo caso, devemos lembrar que no linguajar popular paraibano a expressão “o raio da silibrina” é aparentada a “o cão chupando pena”, “o cão chupando manga”, e semelhantes. Quando Ronaldinho Gaúcho arranca da intermediária, passa um pitu em três zagueiros e encaçapa a bola na gaveta de cima, a torcida brada: “Eita, que o cába hoje tá o raio da silibrina!” -- ou, em mais uma expressão equivalente, “tá virado num traque”.

Quanto a mim, prefiro considerar que se trata de uma operação fonético-numerológica, uma conta de somar com letras em vez de números: “SILIBRINA = sabedoria + livraria + adrenalina”. E estamos conversados.

0700) A prova do crime (16.6.2005)


Num crime recente em Nova York, um Blog na Internet ajudou a resolver um assassinato. Simon Ng era um rapaz de ascendência chinesa que morava num apartamento no bairro de Queens com sua irmã Sharon. Em 12 de maio, o namorado de Sharon ligou para a casa dela, e ela atendeu o telefone dizendo que estava ferida, e que ele pedisse ajuda depressa; não disse quem a tinha atacado. O rapaz chamou a polícia, mas quando esta chegou tanto Sharon quanto Simon estavam mortos, esfaqueados.

A polícia revistou a casa à procura de pistas, e acabou ligando o computador do rapaz (que ficava no quarto, no andar de cima). E encontrou no Blog dele, na Internet, uma última anotação datada das 5 horas da tarde em que o crime foi cometido. Dizia ele: “Ainda há pouco, às 3 horas, tocaram a campainha, e era o chato do Jin Lin, ex-namorado de Sharon, que pediu para ficar esperando por ela. Agora o cara está lá embaixo, fumando e andando de um lado para o outro, e eu não estou gostando nada disso”. Procurado pela polícia, Jin Lin negou que tivesse ido à casa das vítimas. Mas é aquela coisa – bastaram um apertinho e o testemunho da vítima para ele admitir que esperou a moça chegar, brigaram, e ele acabou matando os dois.

Vi a história no jornal e fui lá no Blog do cara (quem quiser conferir, é em: http://www.xanga.com/item.aspx?user=ToTo247&tab=weblogs&uid=261268578). Por ser um caso real, é comovente você ler as últimas palavras que um sujeito de 19 anos escreveu poucos minutos antes de ser morto a facadas. Quando olhei hoje no Blog, havia 255 comentários a este derradeiro “post” do garoto, a maior parte deles com mensagens de “R.I.P.” (Descanse em Paz).

Já falei aqui sobre o que Kurt Vonnegut Jr. chama de “wampeters”, objetos que tornam-se o ponto focal da atenção e das emoções de pessoas que não se conhecem entre si. A Internet pode fabricar essas coisas da noite para o dia, pela multiplicidade e instantaneidade das conexões (em forma de email e de chats). Pode também criar situações imaginárias e ver como as pessoas reagem a elas; fazer uma espécie de laboratório sociológico ao vivo e em tempo real, para avaliar tendências de idéias e de comportamento.

Alguns anos atrás, alguém me mandou uma URL indicando uma notícia num jornal americano sobre um viajante do Tempo que tinha sido preso pela polícia em Nova York. Fui lá, vi as fotos, li a matéria: o sujeito tinha vindo numa máquina do tempo e estava deixando a polícia perplexa com uma série de pequenas predições sobre fatos irrelevantes, que provavam sem sombra de dúvida que ele sabia o que ia acontecer nos dias seguintes a sua prisão. Pulei para umas três homepages diferentes, mandei o endereço para alguns amigos, até que de repente parei – e pensei: “Rapaz, tu tás ficando maluco? Viajante no Tempo?!” Durante meia-hora, o poder da Internet me convenceu. (O fato de eu já ter lido mil livros sobre viagens no Tempo deve ter ajudado um pouco)

0699) Deuses Americanos (15.6.2005)



Recomendo a quem gosta de literatura fantástica o romance de Neil Gaiman Deuses Americanos, lançado recentemente pela Conrad Editora. Gaiman é mais conhecido como roteirista da série de quadrinhos Sandman, mas de dez anos para cá tem publicados vários romances. Coraline, uma história de terror para crianças, é muito bom. Este American Gods também. A premissa do livro é que os antigos deuses e criaturas mitológicas européias se transportaram para a América do Norte durante a colonização, mas estão decadentes e sem poder. Eles andam pelas ruas, transformados em pessoas de carne e osso; têm uma enorme longevidade, mas podem morrer, tanto de morte-morrida quanto de morte-matada. E estão travando uma batalha feroz contra os Novos Deuses: os deuses da Mídia Ambiente, ou seja, da publicidade, do cinema, da TV, etc.

Gaiman é um escritor fluente e ótimo contador de histórias. Uma espécie de Stephen King sem a morbidez doentia que King muitas vezes tem, uma vontade de espremer até o fim o suco de terror e repulsa que uma cena pode fornecer. Gaiman oferece uma boa quantidade de imagens arrepiantes, mas concede apenas uma dúzia de linhas a elas, não mais, e segue em frente – o que me parece literariamente mais eficaz. O livro conta a história de Shadow, um sujeito que ao sair da prisão depois de uma pena leve por assalto vê sua vida familiar destruída e logo depois é contratado como guarda-costas de um sujeito que parece ter poderes sobrenaturais e está sendo perseguido por mafiosos igualmente estranhos.

A humanização dos deuses nórdicos, eslavos, africanos, etc. é um dos aspectos mais interessantes do livro, porque o autor consegue nos dar a idéia de que esses personagens têm poderes imensos e ao mesmo tempo são tão frágeis, complicados e indefesos quanto nós. Eles podem muita coisas que não podemos; mas não podem tudo. Eles também têm que “ir à luta”, têm que “batalhar pelo seu espaço”, etc. O mundo sobrenatural é tão competitivo quanto um escritório ou um mercado financeiro. Gaiman (que é inglês) tem um olho crítico muito arguto para certos aspectos da vida americana: os museus e atrações surrealistas de beira-de-estrada, a cidadezinha pacífica mas cheia de terrores sob a superfície ao estilo Twin Peaks, os golpes e falcatruas dos vigaristas profissionais. Tudo isto é misturado à narrativa sobrenatural com a mesma eficiência de um Tim Powers.

Cultura pop e mitologia milenar são duas galáxias em lenta colisão nos últimos cem anos da Literatura. São dois universos que à primeira vista não têm nada a ver um com o outro, mas que são gerados pelo mesmo impulso humano: o de fantasiar, criar um panteão imaginário de seres excepcionais, que nos servem de espelho, modelo, farol, alerta ou ameaça. O livro de Gaiman deveria interessar a quem gosta de ler sobre mitos. É o mesmo universo de Câmara Cascudo, Joseph Campbell, Mircea Eliade, J. G. Frazer, Umberto Eco (cultura medieval + cultura de massas).









0698) O gangsterismo musical (14.6.2005)



A palavra “gangster” nos evoca, por associação fílmica de idéias, a imagem de um sujeito de sobretudo empunhando uma metralhadora e executando desafetos à luz do dia. “Gang”, no entanto, significa quadrilha, e um gangster é qualquer sujeito que forma uma quadrilha, ou seja, reúne um grupo de pessoas para a prática de atos contra a lei. Em alguns casos, são bandidos que executam rivais à luz do dia (embora com um AR-15 em vez de metralhadora, e T-Shirt em vez de sobretudo). Em outros casos, os gangsters são sujeitos normais como eu e você, não usam armas, são incapazes de fazer mal a uma mosca, são bons maridos e bons pais, excelentes companheiros numa mesa de bar ou restaurante – mas fazem parte de um grupo que pratica atos contra a lei e contra o interesse público.

No mundo da música as opções para se tornar um gangster são muitas e variadas, como em qualquer atividade que produza rios de dinheiro, mordomias, notoriedade, capa de revista, rosto na TV. Não é segredo para ninguém que as multinacionais do disco investiram rios de dinheiro no país, e para cada amazonas investido receberam de volta um oceano-atlântico. Como a fórmula-um das multinacionais é uma disputa ferrenha pela pole-position, pela liderança da corrida, pelo podium no domingo e pelo título no fim do ano, as empresas recorrem a todos os artifícios, legais ou ilegais, para se manterem no topo. Ou, no jargão delas, “otimizar custos e maximizar resultados”.

Todo mundo sabe que no Brasil existe o “jabá”, a propina ou suborno que é paga às emissoras de rádio e aos titulares de programas, para que as músicas A e B sejam executadas e as músicas X e Y não toquem de jeito nenhum. É uma queda-de-braço entre empresas, onde o subornado faz leilão entre os subornadores para ver quem lhe paga melhor, em dinheiro ou favores. Num ambiente onde esta situação predomina, a disputa mais importante não é entre música estrangeira e música nacional, e sim entre música economicamente imposta e música livremente escolhida. Promulgar leis obrigando a tocar música brasileira nas rádios significa apenas que os gangsters, em vez de pagarem para que se toque um cantor americano de seu catálogo, vão pagar para que se toque um cantor brasileiro do mesmo catálogo.

O grande problema disto é que ter uma programa de música numa rádio tornou-se uma atividade muito lucrativa, devido ao jabá, e vai ser difícil convencer essas pessoas a abrirem mão do “depósito em conta”, da “verba de divulgação”, do contracheque por “serviços prestados”, dos convites para congressos com-tudo-pago, das mordomias, dos camarotes por conta da produção, dos presentes de fim de ano, e outros desfrutes de que já ouvi falar mas recuso-me a crer. O grande problemas das leis é que elas só existem para os que concordam em cumpri-las. Os que não concordam passam na frente deles, fazem o que querem, enchem os bolsos de dinheiro, e são quem manda de fato na história da música popular brasileira.

0697) O fim dos EUA (12.6.2005)




Como será que vai acontecer o fim dos Estados Unidos da América? Não digo que seja para breve, e é bem possível que não ocorra no meu tempo de vida, mas acho que vai acontecer com nossos sorridentes irmãos do Norte o mesmo que aconteceu com a União Soviética, a Iugoslávia, a Tchecoslováquia e outros países que, no meu tempo de estudante, eram tão reais (e pareciam tão para-sempre) quanto o Brasil. 

Quebrar os EUA em pedaços não vai ser fácil, e na verdade a metáfora está incorreta, pois não é alguém de fora que vai fazer-lhe isto: é a própria erosão interna que irá fazê-lo esboroar-se como um dente cariado.

Os países não são eternos. Cem anos atrás, quem mandava no mundo era o Império britânico “onde o sol nunca se punha”, ou seja qualquer parte do globo iluminada pelo sol tinha território pertencente aos bisavós do Príncipe Charles. Por isso o nariz dos ingleses ainda se ergue tão alto. 

Hoje, só resta o país-mãe (a própria Inglaterra), e algumas tias velhas que moram na vizinhança: a Escócia, a Irlanda, o País de Gales, etc. E assim passa a glória do mundo.

Países com nome coletivo, nome agregativo, estes me parecem os mais fáceis de desmanchar, porque nunca chegaram a uma síntese final, a uma fusão definitiva. Do ponto de vista químico, diríamos que os EUA não são uma solução, são uma mistura, que se reflete no próprio nome. 

Quando se diz que aqueles são alguns Estados que se uniram, continua a haver algo de provisório nessa união, como se os Estados pudessem se ver desunidos assim que fossem modificadas as condições iniciais de temperatura e pressão.

Philip K. Dick, em O Homem do Castelo Alto imaginou os EUA tendo perdido a II Guerra Mundial, e sendo dividido entre os alemães (que ocuparam a Costa Leste pelo Atlântico) e os japoneses (que ocuparam a Costa Oeste via Pacífico). 

Eu imagino que quando um dia torar-a-viga-do-meio, inviabilizando a possibilidade de um Governo central (digamos: um colapso total e simultâneo da economia e das telecomunicações, coisa mais fácil de ocorrer do que vocês imaginam) os Estados irão se agrupar por critérios de proximidade geográfica e de vínculos históricos e culturais.

Um país ao Nordeste, pegando toda a Nova Inglaterra, região dos lagos até Chicago, englobando New York e Washington. 

Outro a Sudeste, pegando das Carolinas à Flórida, e daí a Oeste com todo o país do “blues” (Mississipi, Louisiana, etc.). 

Tenho pra mim que o Texas será um país à parte, fechado em si mesmo, defendendo-se contra as hordas de mexicanos que começarão a penetrar pelo buraco onde ficam hoje o Novo México e o Arizona. 

E a Costa Leste será o local dos Estados Unidos da Califórnia ou coisa parecida. 

Não é viagem minha, colegas. A ficção científica americana vem trabalhando com cenários assim há décadas. A questão não é adivinhar exatamente como vai ser. É saber que pode acontecer, e que, num certo sentido, já começou.