terça-feira, 21 de outubro de 2008

0615) Pelada e democracia (9.3.2005)




Não existe nada mais educativo sobre o que é democracia do que um jogo de pelada. 

Democracia não é Republicanismo, o qual é apenas uma das modalidades políticas de sua prática. É qualquer situação em que interesses coletivos são administrados através de um debate onde todos têm voz ativa, e onde o resultado final, se não é um consenso unânime, é pelo menos uma solução com que a maioria concorda e a minoria se conforma.

Não existe conceito filosófico mais impreciso do que o conceito peladeiro de “bola fora”. O campo não tem linhas. Às vezes o “fora” é determinado por alguns arbustos: bola entrou no mato, é fora. Às vezes é o trecho onde acaba a grama e começa a terra, ou onde acaba a areia e começa o cascalho. Toda vez que a bola passa por ali, ergue-se o coro: “Foi fora!” “Não foi!”.

No futebol de verdade, a “barra” é de uma nitidez impecável, cartesiana. É um quadrilátero formado por três traves e uma linha de cal: passou dali é gol, e para o caso de uma bolas muito rápida, tem a rede para detê-la e confirmar a trajetória. 

Mas as barras que na adolescência eu alvejei como atacante ou defendi como goleiro eram duas sandálias enfiadas na areia, ou duas pedras, ou dois montes de roupas. Na pelada, a gente é forçado a visualizar traves virtuais e tentar colocar o chute não apenas fora do alcance do goleiro (como fazem os jogadores de verdade) mas de preferência longe das traves invisíveis, longe daquilo que sabemos ser o território da reclamação. 

Na pelada, um gol só é indiscutível se passar pertinho do chão, e a pelo menos um palmo para dentro da “trave”.

Na pelada não há bola na trave, há o famoso “por cima”, ou seja, por cima da pedra. Não é gol. E como não há travessão superior, a altura dessa barra virtual é definida pela capacidade de salto do goleiro. Se a bola for numa altura que o goleiro visivelmente não alcançaria, foi fora. Um goleiro de 1,50 e outro de 1,70 estão, numa mesma partida, defendendo barras proporcionais a seu tamanho e seu salto. 

E tem mais uma: quando o goleiro pula para o alto e toca na bola, valida o gol, porque provou que o chute não era alto assim. Muito goleiro de pelada tenta “dar uma de migué” e fingir que pula, evitando alcançar a bola, para poder dizer que foi bola alta.

Uma pelada é o exemplo típico de como grupos antagônicos resolvem conflitos oriundos de regras pouco claras. E isto é um dos pontos essenciais da democracia, porque você não pode estabelecer regras nítidas e cristalinas para tudo no mundo. 

Na resolução desses conflitos, vigoram os recursos que mandam numa democracia: papo-pra-derrubar-avião, veemência, pressão, barganha (“se aquela outra não foi gol, essa aqui também não foi”), carisma, credibilidade... e malandragem, capacidade para mentir na-cara-de-pau (“juro que não foi com a mão!”). 

Democracia não é o governo do povo, é o governo do texto, o governo dos mais hábeis, dos que melhor convencem os demais a aceitar sua versão dos fatos.






0614) O Velho da Montanha (8.3.2005)


(cartum de Adrian Raeside)

Veteranos da guerra do Iraque têm sido tratados com “ecstasy” para combater o estresse da guerra: ansiedade, insônia, memórias recorrentes de situações de combate, e reações violentas que incluem maus-tratos à família e explosões de agressividade sem causa aparente. Os psicólogos afirmam que o “ecstasy” relaxa, dá uma sensação de “proximidade emocional”, ajuda os soldados a desabafarem seus traumas e sua sensação de inadequação à vida civil e familiar.

Faz sentido. O sujeito em guerra dorme com um olho aberto. Soldado que patrulha as ruas das cidades iraquianas é obrigado a passar o dia inteiro com o dedo no gatilho. Disparar um segundo depois de um alerta pode significar a diferença entre viver e morrer. Basta ver a besteira desta semana, quando soldados americanos metralharam o carro onde vinha uma jornalista italiana que, seqüestrada há um mês, acabava de ser libertada. Resultaram: meteram uma bala na moça, e mataram o agente do Serviço Secreto italiano que a estava escoltando ao aeroporto.

Um Governo puritano e moralista (ainda que só da-boca-pra-fora) como o de Bush recorre a drogas proscritas para tratar seus soldados? Isso me lembra a história do Velho da Montanha, o que criou na Pérsia a Seita dos Assassinos. As lendas são muitas. Por volta de 1270, o Velho da Montanha tinha um setor secreto em seu castelo com rios, fontes, flores, e belos pavilhões cheios de odaliscas. Voluntários eram drogados e transportados para esse lugar secreto, onde bebiam vinho, comiam os melhores pratos e as melhores odaliscas. Depois dessa semana no Paraíso, eram adormecidos, trazidos de volta, e encarregados de uma missão terrorista, geralmente sob a forma de assassinatos seletivos: matar o Xeique Fulano ou o Califa Sicrano. O prêmio seria o retorno ao Paraíso.

Não creio que o governo Bush venha a criar um “resort” cheio de “playmates”, com “ecstasy” e uísque à vontade, para recompensar o cara que passou dos ou três anos abatendo sunitas no Iraque. Isso seria mais de acordo com o perfil de um Governo Clinton. Mas o círculo vicioso entre drogas e guerra se fecha mais uma vez. Basta lembrar Apocalipse Now de Coppola, onde os soldados que patrulham de barco o rio Mekong fumam cada “estaca” do tamanho dum pincel-atômico pra poder agüentar aquele inferno. A própria guerra é uma espécie de droga euforizante, para os que a administram à distância. Como diz o nazista de um conto de Borges: “Giravam sobre nós os grandes dias e as grandes noites de uma guerra feliz. No ar que respirávamos havia um sentimento parecido com o amor”.

Scott Ritter, ex-membro da Comissão da ONU que procurou em vão as armas de destruição em massa no Iraque, fala assim do governo americano: “Eu o comparo com um adolescente que tomou ecstasy: feliz, mas sem saber por que está feliz. Quando o efeito passar, ele vai cair-na-real com toda violência, e a realidade é o atoleiro do Iraque, onde a resistência cresce sem parar”.

0613) Enguiçar-garrafa e Disparate (6.3.2005)


(Brueghel, Jogos)

Na universidade, ao meter a cara nos livros de Antropologia (não, nunca concluí o curso, tinha que estudar muita coisa desnecessária) eu costumava ficar pensando: “Quem produz a Cultura Popular?” É um pouco como perguntar: “Quem escreve as anedotas?” Porque todas aquelas coisas engraçadas têm decerto uma origem, um criador, seja uma pessoa ou um grupo. E hoje, olhando em retrospecto minha infância, eu lembro de coisas que para mim são “cultura popular” mas que nunca vi consignada nos respectivos compêndios.

Uma brincadeira divertida se fazia lá em casa, quando eu tinha 7 ou 8 anos. A gente desafiava uma pessoa a demonstrar seu equilíbrio de olhos fechados. O desafio era colocar uma fila de garrafas, a cerca de meio metro uma da outra, vendar os olhos do sujeito, e pedir que ele caminhasse por sobre a fila, pisando entre as garrafas, fazendo o percurso de ida e volta sem derrubar nenhuma. Vendava-se bem os olhos da vítima, e lá vinha ele. O engraçado era que enquanto os olhos dele estavam sendo vendados e as instruções repetidas, as crianças vinham e recolhiam as garrafas, sem fazer barulho. E lá se ia o coitado, erguendo a perna com todo cuidado, todo satisfeito, crente que estava ganhando a aposta, fazendo aquele balé abestalhado por cima do chão vazio.

Outra brincadeira era a que chamávamos “Disparate”. Quatro pessoas, com papel e lápis. “A” e “B” faziam listas de nomes: pessoas reais, vultos da História, personagens de filmes... “C” fazia uma lista de ações (“tomando banho” – “pulando frevo”...) e “D” uma lista de lugares (“no castelo de Drácula” – “no meio do mato”...). Quando todos tinham a lista pronta, com o mesmo número de itens (10, 15, por aí), liam-se as listas pela ordem, e as cenas formadas eram engraçadíssimas. “Mamãe” – “com Luiz Gonzaga” – “jogando xadrez” – “nas costas dum macaco”... “Juscelino” – “com Tia Adiza” – “catando piolhos” – “no Arco do Triunfo”... E por aí vai.

Depois reencontrei a brincadeira dos “Disparates” entre os numerosos jogos surrealistas que os discípulos de André Breton praticavam com a maior devoção (os Surrealistas sempre me seduziram pelo seu imenso senso de humor). Em seu informativo The Oxford Guide to Word Games, Tony Augarde menciona o jogo chamado “Consequences”, muito em voga na Inglaterra entre 1600-1800, que é uma versão mais complexa dos nossos “Disparates”.

Mas, não sei se por falta de sorte ou desatenção, nunca encontrei em nenhum autor (Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Alceu Maynard, Leonardo Mota, Amadeu Amaral...) qualquer referência à brincadeira de “enguiçar garrafas” que tanto alegrava nossas noites na ampla cozinha de nossa casa na Rua Miguel Couto. Sempre que alguém me fala em Cultura Popular, penso nessas coisas. Cultura Popular é tudo aquilo que aprendemos com as pessoas que nos são mais próximas, e que pensamos ser um segredo precioso que só nós sabemos, um pequeno tesouro que somente nós guardamos.

0612) A vítima de Eros (5.3.2005)


(Jeremy Irons e Juliette Binoche em Perdas e Danos)

Alguns atores parecem encarnar um arquétipo, parecem “ser a cara” de determinados tipos de personagem. Muitas vezes isto tem a ver com um trabalho bem-sucedido. Um sujeito faz um assassino psicopata, ganha um Oscar, e passa os anos seguintes recebendo propostas para interpretar assassinos psicopatas. Talvez por isto um ator tão bom como Anthony Hopkins tenha aceitado interpretar o canibal Hannibal Lecter: estava cansado de interpretar lordes e mordomos britânicos.

Jeremy Irons é um ator inglês talentoso, versátil, mas existe um arquétipo que desaba de vez em quando sobre ele. Eu o chamaria de A Vítima de Eros. Esse personagem é um sujeito aparentemente frio, racional, introvertido, extremamente cavalheiresco e bem educado, sobre o qual se abate uma fatalidade sexual inexplicável, incontrolável e inextinguível. Vejam por exemplo o personagem mais arquetípico que ele já interpretou: o Humbert Humbert de Lolita, na sua versão mais recente. Lolita conta a paixão de um homem quarentão e sisudo por uma adolescente frívola. É um enredo clássico, comparável apenas ao de O Anjo Azul. E é o protótipo da tragédia sexual decorrente de um episódio fortuito da infância que fica incrustado na mente do protagonista e que este procura resolver das maneiras mais desajeitadas possíveis, geralmente arruinando a própria vida.

Não é apenas na direção da pedofilia que Jeremy Irons é empurrado pelas marés irresistíveis de Eros, mas também na direção do homossexualismo. É ele quem interpreta o espantoso protagonista de M. Butterfly, o diplomata que se apaixona por uma cantora de ópera chinesa e mantém relações sexuais com ela durante dezoito anos, sem perceber que se trata de um homem. Uma situação aparentemente absurda, mas que justifica, como nenhuma outra, o dito de que “o amor é cego”. Na verdade, no amor todo mundo só vê o que quer ver, ou, por extensão, o que a pessoa amada lhe sugere que veja.

Em Perdas e Danos, de Louis Malle, Irons interpreta outro diplomata, que é tomado de uma paixão sexual absurda e definitiva pela noiva do próprio filho. Como ocorre em histórias desse tipo, ele passa a correr os maiores riscos, cometer desatinos. Sua vida profissional vira um caos que ninguém entende, porque ninguém sabe o que está se passando. Ele mesmo não sabe. Virou um viciado, que pensa apenas em como conseguir a próxima dose. A tragédia das vítimas de Eros, como Irons as interpreta, é do tamanho do abismo entre sua aparência aristocrática, intelectual, auto-controlada, e o tobogã de insensatez em que ele se deixa mergulhar de bom grado. Não existe nada mais fascinante do que um indivíduo frio, calculista, moderado, sendo arrebatado por uma obsessão carnal que o leva à auto-destruição. Não porque ele seja antipático, mas por nos ensinar que um sujeito assim só foge na direção daquilo que mais teme.