terça-feira, 21 de outubro de 2008

0612) A vítima de Eros (5.3.2005)


(Jeremy Irons e Juliette Binoche em Perdas e Danos)

Alguns atores parecem encarnar um arquétipo, parecem “ser a cara” de determinados tipos de personagem. Muitas vezes isto tem a ver com um trabalho bem-sucedido. Um sujeito faz um assassino psicopata, ganha um Oscar, e passa os anos seguintes recebendo propostas para interpretar assassinos psicopatas. Talvez por isto um ator tão bom como Anthony Hopkins tenha aceitado interpretar o canibal Hannibal Lecter: estava cansado de interpretar lordes e mordomos britânicos.

Jeremy Irons é um ator inglês talentoso, versátil, mas existe um arquétipo que desaba de vez em quando sobre ele. Eu o chamaria de A Vítima de Eros. Esse personagem é um sujeito aparentemente frio, racional, introvertido, extremamente cavalheiresco e bem educado, sobre o qual se abate uma fatalidade sexual inexplicável, incontrolável e inextinguível. Vejam por exemplo o personagem mais arquetípico que ele já interpretou: o Humbert Humbert de Lolita, na sua versão mais recente. Lolita conta a paixão de um homem quarentão e sisudo por uma adolescente frívola. É um enredo clássico, comparável apenas ao de O Anjo Azul. E é o protótipo da tragédia sexual decorrente de um episódio fortuito da infância que fica incrustado na mente do protagonista e que este procura resolver das maneiras mais desajeitadas possíveis, geralmente arruinando a própria vida.

Não é apenas na direção da pedofilia que Jeremy Irons é empurrado pelas marés irresistíveis de Eros, mas também na direção do homossexualismo. É ele quem interpreta o espantoso protagonista de M. Butterfly, o diplomata que se apaixona por uma cantora de ópera chinesa e mantém relações sexuais com ela durante dezoito anos, sem perceber que se trata de um homem. Uma situação aparentemente absurda, mas que justifica, como nenhuma outra, o dito de que “o amor é cego”. Na verdade, no amor todo mundo só vê o que quer ver, ou, por extensão, o que a pessoa amada lhe sugere que veja.

Em Perdas e Danos, de Louis Malle, Irons interpreta outro diplomata, que é tomado de uma paixão sexual absurda e definitiva pela noiva do próprio filho. Como ocorre em histórias desse tipo, ele passa a correr os maiores riscos, cometer desatinos. Sua vida profissional vira um caos que ninguém entende, porque ninguém sabe o que está se passando. Ele mesmo não sabe. Virou um viciado, que pensa apenas em como conseguir a próxima dose. A tragédia das vítimas de Eros, como Irons as interpreta, é do tamanho do abismo entre sua aparência aristocrática, intelectual, auto-controlada, e o tobogã de insensatez em que ele se deixa mergulhar de bom grado. Não existe nada mais fascinante do que um indivíduo frio, calculista, moderado, sendo arrebatado por uma obsessão carnal que o leva à auto-destruição. Não porque ele seja antipático, mas por nos ensinar que um sujeito assim só foge na direção daquilo que mais teme.

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