Você se lembra de Bangladesh, caro leitor? Talvez lembre, se for como eu um fã dos Beatles. George Harrison promoveu nos anos 1970 um concerto beneficente para essa nação vizinha à Índia, concerto que resultou num álbum duplo que é um belo momento político e musical da história do Rock. Bangladesh passou por uma guerra civil, dezenas de milhares de mortos juncavam as estradas, crianças famintas olhavam para as câmaras da TV européia.
Você se lembra de Ruanda? Um país minúsculo e super-populoso, encravado bem no miolo da África. No começo dos anos 1990, uma guerra tribal entre os Hutus e os Tutsis matou mais de um milhão de pessoas, e arrasou a economia do país. Dezenas de milhares de mortos juncavam as estradas, crianças famintas olhavam para as câmaras da TV européia.
Você se lembra do Sudão? Este é mais recente, porque a guerra civil daquele país matou nos últimos anos mais de 2 milhões de pessoas e deixou 4 milhões de refugiados. Os EUA e a ex-URSS venderam milhões de dólares em armas para o país, cada qual tentando contrabalançar a influência do outro. Dezenas de milhares de mortos juncavam as estradas, crianças famintas olhavam para as câmaras da TV européia.
Neste momento, o mundo tenta socorrer as vítimas da Tsunami que destruiu o litoral de vários países asiáticos. Pela contagem de hoje, são 155 mil mortos, número que pode até duplicar se ocorrerem epidemias. Já foram levantados 4,6 bilhões de dólares em donativos. O piloto de Fórmula-1 Michael Schumacher doou 10 milhões de dólares do próprio bolso. O Presidente Bush doou 10 mil dólares.
Por que ninguém levanta uma grana assim para ajudar Ruanda ou o Sudão? Talvez porque todo mundo saiba que o problema do Sudão é político, e se mandarem dinheiro para os pobres esse dinheiro vai ter que passar pela mãos dos ricos, que é pegajosa pra caramba, tudo que chega ali fica grudado. Ou talvez por outro motivo. É que as tsunamis da Indonésia mataram dezenas de milhares de europeus, norte-americanos, australianos. Não foi uma dessas catástrofes em que, do ponto de vista dos ocidentais, morrem apenas os “locais”. Desta vez morreu “gente de verdade”, conterrâneos nossos que todo ano iam tomar banho nas canoas-quebradas e jericoacoaras de lá.
Num artigo anterior (“A música invisível”, 30.3.2003) falei que é mais fácil a gente dar esmola a um mendigo que canta do que a um que apenas exibe as suas escrófulas. É pena que nenhum europeu costumasse pegar um bronze nas praias de Ruanda ou do Sudão, se é que as há. Porque nosso bolso se abre muito mais facilmente para ajudar alguém com quem temos uma relação afetiva, alguém que já nos deu alguma coisa, alguém que já nos recebeu. Pobre Ruanda, país sem “resorts”, sem morenas de sarong. A reconstrução de países como a Indonésia, o Sri Lanka ou a Tailândia (e nada tenho contra isto, viu?) é, uma vez mais, a reconstrução de algo que de certa forma é “nosso”. O que não é “nosso” pode se danar.