quarta-feira, 30 de julho de 2008

0478) As almas crepusculares (30.9.2004)




(estátua de Nathaniel Hawthorne)

Quando um dia eu tiver tempo, ou energia, ou inspiração, vou escrever um livro de 400 páginas dedicado ao estudo de um certo tipo de escritor que denomino “as almas crepusculares”. São aqueles indivíduos silenciosos, introspectivos, com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior, que passam a vida inteira mergulhados nos livros ou nas suas próprias meditações, e cuja obra reflete essa condição de alheamento. 

Em geral são sujeitos puritanos, com pouco contato com mulheres. A maioria nunca se casou, vários deles mantiveram-se praticamente virgens até a morte, e outros conseguiram encontrar uma esposa compreensiva o bastante para aceitá-los e manter-se ao lado deles a vida inteira, cuidando deles, sem atrapalhar.

Um deles foi Jorge Luís Borges, um dos sujeitos mais tímidos que a extrovertida cultura argentina já produziu. Sua vida sexual foi menos movimentada do que a de muitos bispos norte-americanos. Morou a vida inteira com a mãe, lendo livros de filosofia e tecendo labirintos mentais. 

Outro desses foi H. P. Lovecraft, o mestre das histórias de terror, que afirmava ser uma alma do século 18 perdida no século 20, e cujo principal contato com o mundo eram as cartas de 20 ou 30 páginas que mandava para os amigos. 

Não devemos esquecer de Nathaniel Hawthorne, mergulhado no coração puritano na Nova Inglaterra, um recluso que disse certa vez: “Me transformei num prisioneiro dentro de um calabouço, e mesmo que a porta estivesse aberta teria medo de sair.” 

Não está muito longe deles o nosso Augusto dos Anjos com seu temperamento sombrio, mergulhado numa vida imaginativa de rara intensidade. Ou Franz Kafka; Cornell Woolrich; J. R. R. Tolkien.

Não estou radicalizando, não afirmo que esses sujeitos nunca tiveram vida social. Estou colocando-os num extremo de uma escala que no extremo oposto tem indivíduos sanguíneos, extrovertidos, saudavelmente animais, intensamente gregários: gente como Hemingway, Neruda, Henry Miller ou Vinicius de Morais. 

Também não digo que estas “almas crepusculares” fossem somente homens: basta pensar em Virginia Woolf ou Emily Dickinson.

Chamo-os “crepusculares” não apenas pelo clima de melancolia e solidão que cercou as suas vidas, mas também porque todos viveram naquela “Twilight Zone” em que realidade e fantasia pouco se distinguem. Todos cultivaram o hábito da introspecção, dos longos dias de solidão meditativa, da leitura e escritura de textos voltados para o seu próprio mundo mental. 

Não foram homens de ação, não foram adeptos de intensas atividades físicas, não cultivaram o prazer sensual, as aventuras amorosas, a variedade de experiências sexuais. Contentaram-se com o celibato, ou com um casamento sisudo e sem surpresas. Pareciam pedir ao mundo físico à sua volta que andasse na ponta dos pés, que não fizesse barulho, que os importunasse o mínimo possível, porque eles se sentiam no umbral de outro mundo, que só eles viam, e onde se sentiam muito mais em casa.




0477) “The Modern Word” (29.9.2004)



Dos saites dedicados à literatura da Web, um dos meus preferidos é o que um americano chamado Allen Ruch, fã de ficção científica e de literatura moderna, criou em 1995 sob o nome de “The Libyrinth”. Ao descobrir a World Wide Web, Ruch (que também se assina com o apelido de The Great Quail, “A Grande Codorna”) percebeu que não existiam, na época, muitos saites voltados para a obra de alguns dos seus escritores preferidos: Garcia Márquez, James Joyce, Jorge Luís Borges... Em vez de acender um cigarro e se queixar da falta de cultura da população internética, Ruch criou um saite para falar justamente destes autores. O nome “The Libyrinth” é uma homenagem ao que ele considera os dois símbolos desse tipo de literatura: a Biblioteca (“Library”) e o Labirinto. O foco recai em autores cuja obra mostra um uso criativo e experimental da linguagem e uma ruptura com as formas tradicionais do realismo literário.

O saite passou a ser patrocinado anos depois; tornou-se um enorme Portal, e adotou o nome “The Modern Word”, sob o qual pode ser encontrado (http://www.TheModernWord.com/themodword.cfm). A chamada “Coleção Principal” consta de 7 saites com uma gigantesca massa de informações sobre 7 autores: “Porta Ludovica” (Umberto Eco), “Macondo” (Garcia Márquez), “O Jardim das Veredas que se Bifurcam” (Borges), “Apmonia” (Samuel Beckett), “A Cabeça de Bronze” (Joyce), “O Castelo” (Kafka) e “Spermatikos Logos” (Thomas Pynchon). Cada um destes saites subdivide-se em numerosas seções, contendo críticas, ensaios acadêmicos, fotos, cronologia, bibliografia, etc.

Quem se interessa por estes autores encontra na “Modern Word” material de leitura para o resto da vida. Há uma equipe que alimenta o saite com novos textos que saem pelo mundo inteiro. Também interessante é a seção denominada “Scriptorium”, onde outros autores merecem páginas específicas, mas de menor extensão. No “Scriptorium” são abordados autores que futuramente poderão ter saites maiores em The Modern Word, os que já têm muito material na Web, e os que ainda não têm uma obra grande o bastante que justifique todo um portal consagrado a ela. Em todo caso, a seleção vai desde alguns dos melhores autores da ficção científica (Philip K. Dick, Stanislaw Lem, J.G. Ballard, etc.) até bons ficcionistas contemporâneos (Kobo Abé, Primo Levi, Robbe-Grillet, Michael Ondaatje, etc.) O leitor mais magnânimo pode conferir no “Scriptorium” minhas modestas contribuições, as páginas que fiz sobre dois de meus escritores favoritos: Raymond Queneau e Georges Perec.

No meio da balbúrdia de bobagens que é a Web, saites onde informação confiável é filtrada e ordenada são uma verdadeira bênção. The Modern Word pode não ser o maior, o mais variado ou o mais erudito dos saites literários, mas é um exemplo de como é possível encontrar, mesmo na Biblioteca de Babel, um belo livro que se lê com prazer até o fim, ou o infinito.

0476) A régua de cada um (28.9.2004)








Sou um consumidor voraz de cultura-de-massas (leia-se: histórias em quadrinhos, filmes, TV, pocket-books). Tenho críticas a fazer a esse tipo de produção, mas também tenho numerosos elogios. E procuro criticar dentro dos pontos de referência da própria cultura-de-massas. Se leio um livro policial mal escrito, eu não digo: “Fulano não escreve tão bem quando Henry James ou Proust”. Digo: “Fulano não escreve tão bem quanto Raymond Chandler.” Para criticar a indústria cultural não é preciso recorrer a Shakespeare ou a Beethoven. Quem faz isso é o pessoal erudito e preconceituoso, que tem medo de se contaminar lendo ou ouvindo essas obras bárbaras, e, como não tem uma visão geral daquilo que está criticando, só consegue criticá-lo utilizando parâmetros que não têm nada a ver. A literatura de cordel, por exemplo, está cheia de folhetos medíocres, mas de nada adianta dizer que são medíocres comparados aos versos de João Cabral; se são medíocres é porque não alcançam o nível de um Delarme Monteiro ou de um Manuel Camilo.

Não acredito que exista em Arte um critério universal do que é Bom, Belo, ou Importante. Não existe, e ponto final. Temos dezenas de critérios diferentes, que podem ser aplicados tanto a um quadro de Van Gogh quanto a um quadrinho de Ziraldo, e que vão se superpondo, uns somando, outros diminuindo, até a gente poder atribuir um valor relativo a cada obra. Dizer que Van Gogh é melhor do que Ziraldo, ou vice-versa, é bobagem. É como dizer que laranja madura é melhor do que calças jeans. Cada artista pertence a numerosas categorias: época, lugar, estilo, técnica, universo temático, etc. Em cada uma delas, seu trabalho pode ser confrontado com o de diferentes pessoas. Comparar Ziraldo e Van Gogh é meio complicado porque os dois só têm em comum o fato de ambos trabalharem com artes visuais. Já uma comparação entre Ziraldo e Jaguar como cartunistas e quadrinhistas, brasileiros, e da mesma geração, é bem mais sensata. Comparar Ziraldo com Ângelo Agostini, quadrinhista brasileiro de cem anos atrás, já fica um pouquinho mais difícil; e assim por diante.

Será que dá para comparar, por exemplo, a obra de Elino Julião com a de Tom Jobim? São brasileiros, são músicos populares, são contemporâneos um do outro... Mas mesmo assim tem algo aí que não me convence. Não são farinha do mesmo saco. Fazem Música Popular Brasileira, mas os departamentos em que trabalham ficam a quilômetros de distância. Dizer que Tom é melhor porque sua música é “mais complexa, mais rica, mais sofisticada” é tão injusto com Elino Julião quanto dizer que este é melhor do que o maestro porque sua música “é mais espontânea, é mais de-raiz, é mais popular”. Músicas diferentes cumprem funções diferentes, e por causa disto públicos diferentes as procuram por motivos diferentes – ou um mesmo público (eu, por exemplo) procura cada um em diferentes momentos. Difícil medir ambos por uma régua só.

0475) O Inseto e a Morena (26.9.2004)




Philip K. Dick (que uma escritora norte-americana chamou “o nosso Jorge Luís Borges”) dedicou boa parte de sua obra a discutir uma questão básica: “O que é humano? O que nos faz humanos? Como distinguir um ser humano de uma máquina?” 

Este último problema gerou livros como Blade Runner, Caçador de Andróides. Dick, que era um intelectual por conta própria, lia extensivamente obras de filosofia, religião e ciência, tentando encontrar um caminho nesse labirinto de conceitos. Seus livros de ficção científica são comentários dessa luta interior que acabou por matá-lo de um derrame aos 54 anos. 

Numa série de ensaios reunidos após sua morte no livro The Dark-Haired Girl (Willimantic: Mark V. Ziesing, 1988), Dick sugere duas imagens (que se repetem ao longo de seus livros) para descrever o Humano e o Não-Humano.

Para ele, Não-Humano é quem é incapaz de compartilhar emoções com um humano. Uma pessoa sem empatia ou sentimentos é igual a um robô, uma máquina. Criaturas assim eram para PKD uma fonte de medo, de ameaça. Seres implacáveis, distantes, máquinas de reflexos condicionados. 

Ele chama a essas criaturas “The Mantis”, o Louva-A-Deus, o inseto sem emoções que agarra e devora os que lhe surgem pela frente. Em seus livros, essas criaturas são os andróides frios e indiferentes; são os agentes das forças de repressão de um país totalitário; são os viciados em drogas. 

Quando você encara um viciado em heroína (dizia Dick) vê que ele tem olhos de inseto. São duas aberturas de vidro fosco, sem calor, sem vida, que olham para você e calculam quanto podem obter vendendo cada peça de roupa que você tem, para comprar droga. Para um viciado, você não existe. Um viciado não tem alma. Não que ele a tenha vendido: mas ele comprou algo que a devorou.

O Humano, para PKD, é A Morena, “the Dark-Haired Girl”. É a figura feminina que encarna o amor, a sensualidade física, a alegria de viver, e a compaixão – no sentido original de “com+passion”, a capacidade de compartilhar emoções e sentimentos alheios. 

Dick projetou essa imagem em muitas das mulheres por quem se apaixonou: Kathy, Jamis, Linda (na juventude), ou Tessa, uma de suas esposas. É uma imagem que ele identifica também nas “Pietàs” da arte cristã: a Virgem que segura ao colo o Cristo retirado da cruz, o princípio feminino eterno que sobrevive à morte do próprio filho. 

Diz Dick: “Cristo pode morrer na cruz, e a raça humana continua; mas se Maria morrer, tudo está acabado.” 

Dick não idealizava gratuitamente as mulheres (ele é especialista, também, em personagens femininas “insetóides”), mas via nessas mulheres especiais, mulheres “de bom coração”, o que a raça humana produziu de melhor.

O mundo fantasmagórico de Dick girava em torno destas figuras. A Coisa com olhos de inseto clicando as mandíbulas e arrastando-se com pernas de metal para nos devorar; e a Morena que (como ele disse de sua ex-esposa Tessa) “era capaz de levar um grilo doente ao veterinário para que o grilo pudesse cantar novamente”.