quarta-feira, 30 de julho de 2008

0475) O Inseto e a Morena (26.9.2004)




Philip K. Dick (que uma escritora norte-americana chamou “o nosso Jorge Luís Borges”) dedicou boa parte de sua obra a discutir uma questão básica: “O que é humano? O que nos faz humanos? Como distinguir um ser humano de uma máquina?” 

Este último problema gerou livros como Blade Runner, Caçador de Andróides. Dick, que era um intelectual por conta própria, lia extensivamente obras de filosofia, religião e ciência, tentando encontrar um caminho nesse labirinto de conceitos. Seus livros de ficção científica são comentários dessa luta interior que acabou por matá-lo de um derrame aos 54 anos. 

Numa série de ensaios reunidos após sua morte no livro The Dark-Haired Girl (Willimantic: Mark V. Ziesing, 1988), Dick sugere duas imagens (que se repetem ao longo de seus livros) para descrever o Humano e o Não-Humano.

Para ele, Não-Humano é quem é incapaz de compartilhar emoções com um humano. Uma pessoa sem empatia ou sentimentos é igual a um robô, uma máquina. Criaturas assim eram para PKD uma fonte de medo, de ameaça. Seres implacáveis, distantes, máquinas de reflexos condicionados. 

Ele chama a essas criaturas “The Mantis”, o Louva-A-Deus, o inseto sem emoções que agarra e devora os que lhe surgem pela frente. Em seus livros, essas criaturas são os andróides frios e indiferentes; são os agentes das forças de repressão de um país totalitário; são os viciados em drogas. 

Quando você encara um viciado em heroína (dizia Dick) vê que ele tem olhos de inseto. São duas aberturas de vidro fosco, sem calor, sem vida, que olham para você e calculam quanto podem obter vendendo cada peça de roupa que você tem, para comprar droga. Para um viciado, você não existe. Um viciado não tem alma. Não que ele a tenha vendido: mas ele comprou algo que a devorou.

O Humano, para PKD, é A Morena, “the Dark-Haired Girl”. É a figura feminina que encarna o amor, a sensualidade física, a alegria de viver, e a compaixão – no sentido original de “com+passion”, a capacidade de compartilhar emoções e sentimentos alheios. 

Dick projetou essa imagem em muitas das mulheres por quem se apaixonou: Kathy, Jamis, Linda (na juventude), ou Tessa, uma de suas esposas. É uma imagem que ele identifica também nas “Pietàs” da arte cristã: a Virgem que segura ao colo o Cristo retirado da cruz, o princípio feminino eterno que sobrevive à morte do próprio filho. 

Diz Dick: “Cristo pode morrer na cruz, e a raça humana continua; mas se Maria morrer, tudo está acabado.” 

Dick não idealizava gratuitamente as mulheres (ele é especialista, também, em personagens femininas “insetóides”), mas via nessas mulheres especiais, mulheres “de bom coração”, o que a raça humana produziu de melhor.

O mundo fantasmagórico de Dick girava em torno destas figuras. A Coisa com olhos de inseto clicando as mandíbulas e arrastando-se com pernas de metal para nos devorar; e a Morena que (como ele disse de sua ex-esposa Tessa) “era capaz de levar um grilo doente ao veterinário para que o grilo pudesse cantar novamente”.







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