domingo, 27 de abril de 2008

0380) Devido a problemas técnicos (8.6.2004)




Dias atrás eu estava num grupo de pessoas e alguém pôs um CD com gravações antigas de Luiz Gonzaga. Era uma coletânea da gravadora “Revivendo” de Leon Barg, em Curitiba, que pesquisa o acervo dos velhos discos em 78 rotações e os transpõe para CD. São gravações dos anos 1940, ou seja, com tecnologia de mais de 60 anos atrás. Alguém lamentou a má qualidade do som. Outro concordou dizendo que faltava “amplitude nos graves”. Outro lamentou que não fosse possível uma “distribuição melhor de canais”. Ficaram o tempo todo sentindo falta dos recursos técnicos de hoje, enquanto eu ficava me deliciando com a música de ontem. Onde é que esse pessoal anda com a cabeça?!

Eu dizia: “Rapaz, esquece o estéreo, escuta o baião”, mas não adiantava. Eles tentaram me explicar que para poder fruir adequadamente uma música é preciso ter uma riqueza de espectro sonoro que só é possível conseguir hoje, em gravações feitas com a tecnologia de hoje. O que foi gravado no passado, infelizmente, por melhor que tenha sido a intenção, será sempre uma coisa pálida, acanhada, atrofiadazinha. Ouvir um quarteto de Mozart num disco 78 rpm nunca poderá se comparar à riqueza sonora de ouvir Celine Dion numa gravação de verdade.

Ok, reconheço, estou fazendo uma caricatura da situação, mas isto não invalida meu raciocínio. Não quero dizer que estou mais certo do que os outros, mas que cada época forma diferentes tipos de sensibilidade. E hoje em dia o que está se formando, pelo que vejo, é uma geração inteira de ouvidos mimados. Mimados pela limpidez, potência, profundidade, amplitude, nitidez e volume das novas tecnologias de gravação; mimados a tal ponto que o fenômeno musical em si deixa de estar em primeiro lugar, recua para um plano secundário. O que importa é a qualidade do estímulo sensorial: a qualidade do produto estético é irrelevante.

Serei contra a tecnologia? Jamais. Muitos amigos meus, de perfil tradicional-nacionalista, vêem com horror minha paixão pela guitarra elétrica, pelo sintetizador, pelos loops & samples da música eletrônica. Passo a vida aqui nesta coluna elogiando a tecnologia digital, a Internet, todas as bijuterias da pós-modernidade. Mas me desculpem: todo esse conforto está deixando o ouvido de vocês parecido com aquela princesa do conto de fadas, que dormia em cima de oito colchões superpostos, e se botassem uma ervilha embaixo deles ela não pegava no sono de tanto desconforto. Os ouvidos da geração digital tornaram-se incapazes de abstrair um zumbido, de ignorar um chiado, de relevar um arranhão. Ouvem com os tímpanos, não com o cérebro. Ao escutar um concerto de piano, sua atenção não está voltada para o piano, e sim para a caixa de som. Saudade mesmo eu tenho é do grupo Premeditando o Breque, que tocava velhos chorinhos no palco enquanto um deles amassava uma bola de papel junto do microfone, para reproduzir o chiado dos velhos discos 78.

0379) Os que escutavam (6.6.2004)




A força de um bom poema reside tanto no que ele diz quanto no que ele deixa de dizer. Algo semelhante ocorre nas boas histórias de mistério, que quando se encerram parecem ser ainda mais misteriosas do que durante seu transcorrer, e nos deixam com mais perguntas do que respostas.

O poema “The Listeners” do inglês Walter De La Mare (1873-1956) sempre me produziu esta impressão. Nunca o li em tradução, e fico imaginando como se traduziria seu título. “Os ouvintes”? Não gosto: a palavra tem entre nós uma conotação muito forte de “ouvintes de rádio”, é uma palavra muito contaminada de contexto. “Os que escutam”? Não sei.

Em todo caso, o poema começa dizendo: “—Há alguém aí? – perguntou o Viajante, batendo na porta banhada pelo luar, enquanto seu cavalo mastigava a grama no solo fértil da floresta.” 

É uma noite de lua, e esse cavaleiro veio bater à porta de um casarão aparentemente deserto. Um pássaro esvoaça da torrezinha do solar, assustado pela batida, mas “ninguém se debruça da balaustrada, enquanto ele permanece ali, perplexo e imóvel.”

O Viajante bate mais uma vez, com força: “Há alguém aí?!” 

A casa está às escuras e parece abandonada, mas o poeta revela que ela está ocupada por “uma horda de fantasmas que escutam aquela voz vinda do mundo dos homens.” O Viajante sente a estranheza daquele momento, daquela ausência de respostas, e volta a esmurrar a porta com toda força, erguendo a cabeça para as janelas e bradando: “Pois digam a todos que eu vim, e que ninguém respondeu! Digam que eu cumpri minha palavra!” 

Sua voz volta a ecoar no interior sombrio da mansão. Os fantasmas o escutam, mas não ousam fazer o menor movimento. Eles ouvem quando o Viajante caminha até o cavalo; ouvem seus pés montando nos estribos, e o som das ferraduras sobre as pedras. E o silêncio retorna, mais pesado do que antes, quando o som dos cascos do cavalo se perde à distância.

Que lugar é este? Que mansão é esta? Não sabemos. Vemos o desfecho de uma história que não nos foi contada, mas que ressoa dentro de nós como as batidas do cavaleiro noturno ressoam à porta da casa deserta.

Por que esse homem voltou? Por que os fantasmas lá dentro se escondem, silenciam, fazem de conta que não o ouvem chamar? Quem é esse Viajante que vem de tão longe, a essa hora, somente para cumprir uma palavra dada?

Temos a estranha sensação de que já vimos esta cena. A sensação de que já fomos aquela pessoa que para cumprir uma promessa bate em vão à porta de uma casa abandonada; e de que já fomos aqueles que se escondem e escutam alguém batendo à nossa porta, para um acerto de contas do passado distante.

Temos a sensação de que vivemos num país de surdos, de fantasmas amedrontados, e que há um homem que bate à porta deste país, para nos lembrar de um compromisso antigo; mas não temos força para atender. Fingimos que não o ouvimos, na esperança de que um dia ele pare de nos chamar.





0378) O instrumental do arrasta-pé (5.6.2004)



(ilustração: Samuca, Diário de Pernambuco)

Coube a Luiz Gonzaga formatar o que hoje conhecemos como o forró-de-raiz, cuja instrumentação básica é o trio (que é a cara de Gonzagão) sanfona, zabumba e triângulo. 

Complementos enriquecedores a este trio podem ser o reco-reco, o pandeiro e o agogô, que por sua vez são a cara de Jackson do Pandeiro. 

Note-se que em muitas das gravações originais de Gonzaga nos anos 40 e de Jackson nos anos 50 observamos, como consequência inevitável da influência dos arranjadores e instrumentistas em cujo meio eles viviam, a presença de instrumentos mais intuitivamente associados ao samba e ao choro: o violão (fazendo a famosa “baixaria”), o cavaquinho, a flauta e o clarinete. 

Não esqueçamos também que um dos baiões de maior sucesso em todos os tempos foi “Delicado”, de 1951, no cavaquinho de Valdir Azevedo.

Quem leva a sério a definição de um formato “oficial” para o forró de raiz deveria fazer um estudo detalhado da presença e da função de todos estes instrumentos (e outros que não citei) na discografia essencial não apenas de Gonzagão e de Jackson, mas também na de outros artistas que tiveram influência decisiva na invenção da Música Fonográfica Nordestina: Manezinho Araújo (cujas emboladas tiveram um papel importantíssimo na criação de uma nordestinidade musical), João do Vale, Marinês, Ary Lobo e outros.

Surge então uma pergunta: será que instrumental é um fator decisivo para definir um gênero de música? 

Muitas vezes, sim. Na criação de um gênero, os instrumentos usados são algo crucial. Depois que o rock-and-roll já existia e tinha perfil próprio, teve gente fazendo rock com violão acústico, com orquestra sinfônica, com o escambau. Mas o rock não seria o que é se tivesse sido criado sem guitarra, baixo e bateria. O mesmo ocorre com os variados gêneros nordestinos que se escondem sob o rótulo “forró”.

Depois que o forró foi formatado, o próprio Luiz Gonzaga usou guitarra e baixo, e com bons resultados, como por exemplo “O fole roncou”. Eram sonoridades novas superpondo-se a um formato já assimilado e a um contexto cultural já definido. Mas quem pegar as gravações originais de Gonzagão e de Jackson irá se surpreender com a variedade de instrumentos utilizados e principalmente com o minimalismo de efeitos. 

Hoje em dia as bandas mais parecem um pelotão de fuzilamento: a gente vê shows de forró com duas ou três sanfonas no palco, um teclado, um monte de vocalistas, guitarras e baixo, bateria, percussão completa, mais uma zabumba... É um quebra-quebra–guabiraba onde mal se consegue perceber a melodia, a sequência harmônica, a letra.

Peguem os discos antigos de Jackson do Pandeiro. Uma zabumba marcando, o pandeiro fornecendo os balanceios, um ganzá ou reco-reco fazendo aquele traço de continuidade que serve como um trilho de trem, um violão bordando os baixos nas cordas de cima, uma sanfona discreta emergindo para os solos... e o cantor. Ninguém hoje em dia faz tanto com tão pouco.