Há cerca de dois anos eu estava passando uns dias em João Pessoa, hospedado na casa de Gustavo Moura em Manaíra, quando o telefone tocou, eu atendi, e era o poeta Lúcio Lins. Ele tinha acabado de fazer uma cirurgia que lhe tirou um pulmão inteiro, se não me engano. Conversamos por algum tempo, e ele disse: “Pois é, poeta, a gente imagina que o que tem dentro da gente é só poesia, mas não é não”. Era o Lúcio de sempre, com seu humor cortante e aquela enorme capacidade de ironia neutralizadora que tanto ajuda um sujeito a sobreviver quando o placar está adverso. Dias depois fiz-lhe uma visita com Xisto Medeiros, e ficamos uma ou duas horas conversando na mesinha do jardim. Lúcio estava se recuperando aos poucos, fisicamente, e mantinha a cabeça erguida, o olhar para a frente.
Voltamos a conversar no Fenarte de 2003, e daí em diante não o vi mais, embora estivesse a par da homenagens que felizmente lhe foram prestadas em vida, inclusive a criação do Centro Cultural Lúcio Lins. Sábado passado, cheguei em casa de madrugada e havia à minha espera um email da lista “Essas Coisas” de Carlos Aranha, falando da morte do poeta. Não revi Lúcio nesta fase final da doença, o que por um lado lamento, por saber agora que não o reverei mais. E por outro lado a imagem que guardo é a do Lúcio agitado, inquieto, o pé tamborilando no chão, irreverente e compassivo, sempre trazendo na ponta da língua uma piada mordaz, e um subtexto de carinho. Estou sabendo que foi o mesmo até o fim, mesmo abatido pela devastação física. Não perdeu o humor, nem a lucidez serena diante do inevitável.
Tem sujeito que já nasce com a missão predestinada de ser poeta, como, sei lá, Chico Buarque ou Ivanildo Vila Nova. Outros recebem uma overdose precoce de poesia que chega quase a destruí-los; brilham com intensidade e depois fartam-se dela, como Rimbaud. Lúcio foi dos que fazem da poesia uma conquista gradual, amadurecida e aperfeiçoada com o passar dos anos. Até segunda ordem, Perdidos Astrolábios é seu melhor livro, ou pelo menos o mais depurado, mais lapidado. “O que ficar de mim / podem velar / é a vaidosa lágrima / se dizendo mar”.
A boemia foi a fornalha do alambique onde a poesia de Lúcio Lins foi sendo destilada ao longo da vida, e acreditem, esta metáfora não é gratuita. Nos seus poemas, toda vez que leio “mar” penso estar lendo “a Noite”, no sentido boêmio do termo. Quem nasce com coração boêmio vê assim as noites: imensas, traiçoeiras, sedutoras e navegáveis. Tempestades e calmarias; batalhas e portos aconchegantes. A noite para o boêmio é um zarpar, um içar ferros, um desfraldar velas, partir sem saber para onde, entregando-se aos acasos das ruas desertas palmilhadas a pé, dos bares que surgem como ilhas iluminadas por possibilidades de repouso e aventura. A vida nos levou a fazer a noite, e na noite cada um de nós encontrou uma vida diferente, destilada em beleza. Quem duvidar, é só reler.
Confesso que nunca gostei da poesia nele, e nunca vi nela essas coisas todas, mas respeito o papel que ele teve aqui na Paraíba.
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