quarta-feira, 15 de outubro de 2008

0604) As Kenningar (24.2.2005)




Jorge Luís Borges comenta em vários ensaios uma curiosa formação lingüística que ele aprendeu na poesia da Islândia, e que são as chamadas “kenningar” (ao que parece, é “kenning” no singular, “kenningar” no plural). 

O ensaio mais didático, e mais acessível ao leitor brasileiro, é “As kenningar”, no volume História da Eternidade (Ed. Globo). 

As kenningar são epítetos obrigatórios que os poetas da Islândia utilizam para descrever tudo, desde uma paisagem até um animal, desde uma arma até um veículo. São símbolos obrigatórios, por assim dizer, ou metáforas verbais consagradas a tal ponto pelo uso e pela tradição que espera-se de um poeta que volte a usá-las, que as conheça e respeite, que as repita, que crie variantes.

Borges nos fornece naquele ensaio uma longa lista de kenningar cuja compilação, confessa ele, lhe proporcionou “um prazer quase filatélico”. Alguns exemplos: “tempestade de espadas” significa batalha, “repouso das lanças” quer dizer paz, “lua dos piratas” é o escudo, “país dos anéis de ouro” é a mão, “o suor da guerra” é o sangue, “o irmão do fogo” é o vento. 

Os poetas islandeses repetiam as expressões antigas e criavam novas – a enumeração de Borges registra dez imagens desse tipo para dizer “espada”.

O que são as kenningar? Para mim, são clichês, são lugares-comuns. Não digo isso em tom pejorativo, mas para tentar equacionar essa duas qualidades aparentemente contraditórias, a fagulha poética e a cansativa repetição. O excesso de uso embota a lâmina da linguagem, e eis aqui uma boa kenning em língua portuguesa, não é mesmo? 

Cada metáfora desse tipo nos provoca um choquezinho-elétrico agradável nos nervos sensíveis à poesia, quando a encontramos pela primeira vez, mas com cada repetição o efeito decai em proporção geométrica. O clichê fica oco, vazio, mera repetição mecânica, e irrita o leitor mais calejado, que está tropeçando nele pela centésima vez.

Existem kenningar de segundo grau, que são combinações mais complexas de fórmulas já existentes; daí dizer-se que os reis generosos ou perdulários são “os que desprezam a neve do posto do falcão”, porque o “posto do falcão” é a mão, e a “neve da mão” é a prata: os reis generosos distribuem a prata como se ela não tivesse valor. 

Diz o órfão-platense-do-Prêmio-Nobel (tá vendo? A gente pega o jeito rapidinho): “Lua-dos-piratas é uma fórmula que não se deixa substituir por ´escudo´ sem perda total. Reduzir cada kenning a uma palavra não é isolar uma incógnita: é anular o poema.”

As kenningar não são estranhas ao processo espontâneo de fabricação de clichês em nossa língua brasileira, e não me refiro às elucubrações literárias, mas à língua das esquinas, dos botequins e dos radinhos de pilha. 

Todos nós sabemos que quando o esquadrão da Gávea adentra o tapete verde do templo do futebol, é para ensinar ao onze cruzmaltino, pó-de-arroz ou da estrela solitária como se pratica o esporte bretão dentro das quatro linhas.





Um comentário:

  1. Poxa, que interessante! Nunca havia ouvido falar a respeito das "kenningar". Nem as do Borges nem as da Islândia.

    Gostei também da questão que você levantou, de preconceito com os blogs. Há pessoas que usam seus blogs como diários e acham que os outros "tem algo a ver com isso". Mas há muita gente com trabalho sério por aí.

    Eu o convido a passar no Cinco Espinhos e conhecer nossa proposta.

    Abraços

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