terça-feira, 14 de outubro de 2008

0596) O K, o W e o Y (15.2.2005)



O Brasil é o país das leis que não pegam. Se isso ocorre com as leis que regem nossa vida civil e interessam a todos (dinheiro, família, Código Penal, etc.), avaliem vocês as leis que regem a língua, uma coisa de que nossa sobrevivência depende tão pouco. Respeito a gramática, mas me permito discordar dela de vez em quando. As leis da gramática não são da mesma natureza que as leis da Ciência. Estas exprimem certas propriedades fundamentais da Natureza: o mundo é assim, e pronto, o jeito é a gente entender e se adaptar. As leis da Gramática, contudo, são leis que têm origem social, que têm origem no uso e na prática da língua pelas pessoas. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, como dizia Camões, e as leis da língua podem muito bem mudar.

A Reforma Ortográfica baniu de nosso alfabeto as letras K, W e Y, consideradas estrangeiras. Foi o mesmo que banir a maconha, o candomblé ou o jogo-do-bicho, ou seja: não deu em nada. Essa reforma a que me refiro foi uma limpeza providencial no idioma, eliminando coisas supérfluas como as letras duplas mudas (“offerecer”, “ella”, etc.), o famigerado “ph” no lugar do “F”, etc. . Não há dúvida de que é um grande avanço escrever “tísica” em vez de “phthysica”. Se teve uma coisa que não colou, no entanto, foi o banimento dessas três simpáticas turistas.

Acho que cada pai e mãe, a certa altura do campeonato, passa por esta cena. A criança, já capaz de ler uma revistinha ou um livrinho, pergunta: “Pai, que letra é essa?” O pai: “É um dáblio.” A criança aponta para o quadrozinho-negro que tem o alfabeto, o ábaco e o mostrador-de-relógio: “Mas cadê?” O pai: “É porque é uma letra que não existe no Brasil.” Grave problema filosófico se instala no juízo do pirralho. Dias atrás resolvi dar uma checada no “Dicionário Houaiss”, o meu preferido. A letra “K” tem três páginas e meia de verbetes. A letra “W” tem duas. A letra “Y” tem meia. Parece pouco, concordo. Mas para quem não existe oficialmente, está de bom tamanho. E olhe que isto computa apenas as palavras iniciadas pela letra, deixando de lado sua incidência no interior da palavra.

Não, não quero deflagrar aqui um Movimento de Anistia Ampla, Geral e Irrestrita para as letras deportadas. Não quero que elas pulem as barreiras de nossa alfândega, favorecidas pelos ventos da globalização, e venham disputar o nosso mercado de trabalho, causando ondas de desemprego entre o Q, o U, o V, o I... Claro que precisamos de uma reserva-de-mercado para a mão-de-obra nacional, a qual precisa manter os espaços conquistados. Só peço é que essas letras deixem de ser consideradas não-existentes, percam esse status absurdo de imigrantes ilegais. Reconheçamos sua origem alienígena, cubramo-las de ressalvas e barreiras, mas que elas pelo menos sejam consideradas parte oficial do nosso alfabeto. Senão as crianças vão começar a perceber, desde muito cedo, que uma coisa é o que o Governo diz, e outra o que ele permite acontecer.

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